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  O fabuloso Ary Barroso ainda ecoa pelo planeta
- 2014-09-10 - Carta Capital

Morto num domingo de Carnaval há 50 anos, quando o Império Serrano entrava na avenida com o enredo Aquarela Brasileira, o compositor Ary Barroso ainda ecoa sua música pelo planeta. A recém-editada antologia Sonzeira – Brasil Bam Bam Bam, do DJ e produtor franco-suíço Gilles Peterson, radialista da BBC londrina, incluiu o megaclássico do autor (creditado como Ary Barossa) Aquarela do Brasil, em releitura rouca e confidente de Elza Soares. Em lançamento avulso, no iTunes, a popstar sertaneja Paula Fernandes surfa nos eflúvios da Copa, num inédito duo póstumo com Frank Sinatra, em Brazil, a versão em inglês da composição, exportada na era Carmen Miranda da política da boa vizinhança com os ianques, aliados na Segunda Guerra Mundial.

Forjado no ufanismo do Estado Novo, esse eufórico samba exaltação desembarcou no bel canto de Francisco Alves em 1939, sob a opulenta orquestração de Radamés Gnattali, sincronizada com a ginga da percussão. Ocupava as duas faces de um single em 78 rotações, algo reservado apenas a óperas e composições eruditas, e tornou-se a música brasileira mais popular no exterior até o aparecimento da bossa-novista Garota de Ipanema, cujos autores, Tom Jobim e Vinicius de Moraes, sempre louvaram os méritos do antecessor.

Jobim fez uma regravação épica da Aquarela, de voz e piano elétrico, no álbum Stone Flower (1970). Vinicius tornou-se parceiro de Barroso (a quem saúda no Samba da Bênção) em quatro composições, entre elas Rancho das Namoradas (sucesso posterior com Nara Leão) e Mulata no Sapateado, relida por Mart’nália em 2002. Gladiador ortodoxo do samba, Barroso passou pelo crivo vanguardista da bossa. No primeiro disco, João Gilberto redimensionava os requebros de É Luxo Só e Morena Boca de Ouro. No tropicalismo, Rogério Duprat reciclou Rio de Janeiro e Gal Costa prestou-lhe o álbum tributo Aquarela do Brasil (1980). O pictórico No Tabuleiro da Baiana reuniu o referido João e seus conterrâneos Gilberto Gil, Caetano Veloso e Maria Bethânia em faixa do disco Brasil (1981).

Não foi por acaso. Mineiro de Ubá, Ary Evangelista Barroso antecedeu o local Dorival Caymmi, ainda em 1931, na entronização mítica do cenário descrito em Bahia (Baiana tem mandinga/tem feitiço/eu sou da Bahia e mereço um sacrifício). E seguiu por Nega Baiana, Batuque (Na Bahia Tem), Terra de Iaiá, Quando Penso na Bahia, Na Baixa do Sapateiro e a hiperbólica Faixa de Cetim (Bahia, terra de luz e amor/ foi lá onde nasceu/Nosso Senhor).

Sua produção caudalosa, vincada de obras-primas, pode ser compulsada na caixa de 20 CDs Brasil Brasileiro, que reúne 316 gravações originais de suas composições, de 1928 a registros póstumos de 2006, resultado de 12 anos de trabalho do pesquisador Omar Jubram, o mesmo dos sete volumes do monumental Noel pela Primeira Vez (2000). Múltiplas faces de Barroso emergem do roteiro. Pianista e líder de orquestra, escolado na carpintaria cênica do teatro de revista (Vamos Deixar de Intimidade, Tu Quer Tomá Meu Home, O Amor Vem Quando a Gente Não Espera, É do Balacobaco), um dos artífices da trilha sonora da era do rádio (Camisa Amarela, Os Quindins de Iaiá, Três Lágrimas, Pra Machucar Meu Coração), atuante no cinema e depois na tevê, perpetrou, segundo a classificação de gêneros impressos nos rótulos dos discos, 165 sambas, 68 marchas, 18 sambas-canções, 14 canções, 10 valsas e 5 choros, entre outros estilos. Foi colunista e um passional locutor esportivo, torcedor fanático do Flamengo, capaz de trinar uma gaitinha nos gols de seu time e omitir os do adversário.

Irritadiço apresentador do programa Calouros em Desfile, emoldurado pelos óculos de hastes grossas e o bigodinho triangular, Barroso com frequência mandava gongar os concorrentes. Na caixa, há uma amostra do programa transmitido pela Rádio Tupi, do Rio, numa edição de dezembro de 1946, em que um calouro imita animais e é ironizado por ele. Entre outras curiosidades da compilação está o jingle de propaganda do Chope em Garrafa, da cervejaria Brahma, em parceria com o poeta Bastos Tigre, gravado por Orlando Silva, sucesso no Carnaval de 1935.

Para o laboratório Fandorine ele criou Despacho, um samba inacabado, a ser completado pelos ouvintes, num prenúncio da futura interatividade das comunicações. Vereador pela União Democrática Nacional (UDN), eleito em 1946, Barroso cerrou fileiras com os 18 integrantes do Partido Comunista, então na legalidade, liderados por Aparício Torelly, o humorista Barão de Itararé, contra o colega de bancada Carlos Lacerda, adversário da construção do Estádio do Maracanã, na Copa de 1950, para a qual endereçou o samba O Brasil Há de Ganhar, gravado por Linda Batista. Outra faixa traz a marchinha escrita para o candidato udenista à Presidência, em 1960, Jânio Quadros (Quem é que vai recuperar esse país?/quem é que vai fazer o povo mais feliz?), cuja letra soa sarcástica após os desdobramentos nefastos de sua renúncia.

Criador inquieto, Barroso inicialmente seguiu o cordão dos sambas amaxixados do início do século, mas logo, no estupendo Faceira, na voz de Silvio Caldas (1931), introduziu a síncopa batuqueira que o caracterizaria, sem prejuízo de lépidas marchinhas como a provocadora Dá Nela (com Francisco Alves, em 1930) e a atrevida Eu Dei (Carmen Miranda, 1937). O compositor fustigou a questão racial brasileira de diversas maneiras. Do humor insidioso de Boneca de Piche à teatral Cena de Senzala, a aguda Negra Também É Gente e a áspera Terra Seca (o nego tá moiado de suó/ trabalha, trabalha, nego!/ as mãos do nego tão que é calo só), regravada de Jair Rodrigues a Wilson Simonal.

A desiludida Caco Velho (a vida é essa/é um segundo que se esvai depressa) acabou nomeando um de seus intérpretes, o gaúcho Mateus Nunes. Lançada em disco por Carmen Miranda (1934), a parceria com Luis Peixoto Na Batucada da Vida, da revista musical Há uma Forte Corrente..., ganhou releitura à flor da pele de uma diva posterior, Elis Regina, exatos 40 anos depois. O protesto precursor Falta um Zero no Meu Ordenado, com Francisco Alves, em 1948, foi parar na voz de Jards Macalé, no songbook dedicado à sua obra, produzido por Almir Chediak, em 1995.

Autor do clássico samba-canção, em parceria com Lamartine Babo, No Rancho Fundo (regravado até pela dupla Chitãozinho & Xororó), Barroso indispôs-se com a influência do bolero caribenho no gênero brasileiro, nos anos 50. Mesmo assim, disparou no alvo da nova tendência os virais Risque (Aurora Miranda, 1952), Folha Morta (Dalva de Oliveira, 1953) e Ocultei (Elizeth Cardoso, 1954). Mordaz até o fim, acamado pela cirrose que o vitimaria, ligou do hospital para o jornalista e letrista David Nasser, despedindo-se, porque ia morrer, conta Sérgio Cabral, na biografia No Tempo de Ary Barroso. “Como sabe?”, perguntou o outro. “Estão tocando minhas músicas no rádio”, fuzilou.