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João Máximo - 2003-11-07 - O Globo

"Aquarela do Brasil" — a mais emblemática canção brasileira — tem resistido a tudo: ao tempo, às modas, às restrições feitas a liberdades cometidas em sua letra (principalmente o "mulato inzoneiro" e o "coqueiro que dá coco") e até à acusação de ter sido uma espécie de hino do Estado Novo. Mais que resistir, é a música mais associada ao Brasil, a ponto de muito estrangeiro já ter pensado tratar-se, não de um samba-exaltação, mas do próprio Hino Nacional. E é por ele, e não pelo melhor de sua obra, que Ary Barroso é mais lembrado neste 7 de novembro, dia do centenário de seu nascimento.

Como foi feito este samba? E por que é o que é? Merece a fama que tem? Será por tê-lo escrito que Ary Barroso já foi considerado, por um crítico, “o mais brasileiro dos brasileiros”, ou somos um povo incuravelmente ufanista, incapaz de resistir ao mais exagerado dos arroubos cívicos?
Como lembra seu biógrafo Sérgio Cabral, em 1958 Ary descreveria a gênese da “Aquarela do Brasil” em entrevista à musicóloga Marisa Lyra. E o faria misturando o jeito que certos artistas têm de dizer que, para eles, é fácil criar obras-primas, com o seu velho hábito de transformar em discurso derramado a consciência do próprio gênio. Disse Ary que chovia muito na noite em que a inspiração e “um sentimento patriótico inarredável” o levaram a sentar-se ao piano de sua casa no Leme:
“Senti, então, iluminar-me uma idéia: a de libertar o samba das tragédias da vida, do sensualismo das paixões incompreendidas, do cenário sensual já tão explorado. Fui sentindo toda a grandeza, o valor, a opulência da nossa terra, ’gigante pela própria natureza’. Revivi, com orgulho, a tradição dos painéis nacionais e lancei os primeiros acordes, vibrantes, aliás. Foi um clangor de emoções. O ritmo original, diferente, cantava na minha imaginação, destacando-se do ruído forte da chuva, em batidas sincopadas de tamborins fantásticos. O resto veio naturalmente, música e letra de uma só vez (...) Senti-me outro. De dentro de minh’alma, extravasara um samba que eu há muito desejara, um samba que, em sonoridades brilhantes e fortes, desenhasse a grandeza, a exuberância da terra promissora, da gente boa, laboriosa e pacífica, povo que ama a terra em que nasceu. Esse samba divinizava, numa apoteose sonora, esse Brasil glorioso.”

Uma aquarela de tintas teatrais

Talvez tenha sido realmente assim. Mas não se deve esquecer que essas palavras foram ditas quase 20 anos depois da criação de “Aquarela do Brasil”. E que é bem provável que impulsos outros tivessem levado Ary ao piano. Por exemplo: sua condição de compositor teatral. Durante toda a década de 30, não houve um só ano em que não estivesse em cartaz pelo menos uma peça com música sua. São os anos de parceria com o grande revistógrafo (grande letrista também) Luís Peixoto. As canções feitas para o palco visavam a cenas que davam ensejo a canto, dança, fantasias e cenários brasileiros os mais variados, reunidos em quadros em geral gradiosos. “No Tabuleiro da Baiana“, “Terra seca”, “No Rancho Fundo”, “Boneca de piche”, “Quando eu penso na Bahia”, foram todos escritos para o teatro. Logo, “Aquarela do Brasil” pode ter nascido com o mesmo fim. Não foi por acaso que seu lançamento se deu na noite de 16 de junho de 1939, na revista “Entra na faixa”, pela voz de Aracy Cortes, então de volta ao Teatro Recreio. Nem foi por acaso que muitos viram na letra de Ary um possível “monstro” de Luís Peixoto (na linguagem musical, “monstro” é uma letra provisória feita para marcar sílabas, pontuação e acentuação da melodia). Mas não. Cada verso saiu mesmo da pena hiperbólica de Ary.

O fato é que “Aquarela do Brasil” só começou a acontecer 45 dias depois da estréia da revista, num espetáculo beneficente promovido pela primeira-dama Darcy Vargas. Espetáculo, diga-se, pretensamente sofisticado, diferente da revista: em lugar do Recreio, o Teatro Municipal; a platéia habitual da Praça Tiradentes substituída por grã-finos que podiam pagar caro pelo ingresso; o carioquíssimo título “Entra na faixa”, pelo afrancesado “Joujoux et Balangandans”; a descontraída Aracy Cortes, pelo solene barítono Cândido Botelho.

O samba ganharia elaborada orquestração do maestro Radamés Gnattali (com sua percussão de sopros discutivelmente pioneira) e logo seria gravado, nos dois lados de um disco de 78 rotações, pelo cantor mais popular da época: Francisco Alves. Sucesso. Tão grande que o Estado Novo realmente pegou carona em sua ode ao “Brasil brasileiro”. Do que Ary não teve a menor culpa. Como seu futuro político haveria de provar (seria eleito vereador pela antigetulista UDN), o seu Brasil não era aquele.

Passados 64 anos, se Ary Barroso só é lembrado pela data redonda, “Aquarela do Brasil” não é esquecida. Ainda é votada como a canção do século, a melhor, a mais popular, a mais brasileira, a mais quase tudo.