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  De Ary | Sobre Ary

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  Ary Barroso
Luiz Gallotti - 0000-00-00

Em Caxambu, na manhã da segunda-feira de carnaval, estava eu no Parque das Águas, quando me senti atraído a ouvir no rádio de um dos empregados da empresa o Repórter Esso das oito horas, o que não fizera nos dias anteriores. Dir-se-ia que era o chamado para receber a notícia da morte de Ary Barroso. Dirigi-me, em seguida, ao telégrafo para transmitir à família de Ary a minha mensagem de pesar e enternecida saudade. E fiquei a recordar os lances de uma amizade que nascera em 1922, quando juntos ingressamos na Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, hoje Universidade do Brasil. A formatura de Ary não ocorreu em 1926. Retardou-se de alguns anos, porque ele necessitava trabalhar, ao piano e em orquestras, para obter assim os meios de subsistência. Mas a nossa amizade perdurou e, da minha parte, era também admiração por um talento que se afirmava luminosamente em facetas várias.

Ary foi responsável pelo meu ingresso em órgãos de direção desportiva, pois, a convite seu e por indicação sua, em 1938, após o campeonato mundial de futebol, me tornei membro do Conselho Superior da Federacão Brasileira de Futebol. E daí decorreram as outras posições que ocupei depois no esporte.

Na primeira vez que Ary me procurou no Supremo Tribunal, dirigiuse a mim, tratando-me de Ministro. Estranhei, fazendo-lhe ver que ali não estava o Ministro mas o amigo e que o meu título de Ministro valia bem pouco em confronto com a sua glória de compositor mundialmente consagrado.

Anos depois, eu o recebia em nossa casa para ouvi-lo sobre um mandado de segurança requerido por entidade a que estava vinculado. O remédio judicial foi indeferido com ressalva do apêlo às vias ordinárias (que nem foram usadas porque logo se seguiu um acôrdo entre os litigantes) e tive de ficar entre os que o indeferiram, obediente à minha convicção, já firmada aliás em pleitos anteriores, quanto ao âmbito estreito daquele remédio sumaríssimo.

Ary ressentiu-se, sem que nosso comum amigo João Lyra Filho conseguisse dissipar-lhe logo a mágoa.

Cedo, porém, a paixão seria vencida pela grandeza de espírito do meu inolvidável amigo.

Algum tempo depois, estavamos minha mulher e eu no salão do hotel onde residimos em Brasilia, quando Ary se aproximou de nós, nos abraçou e nos beijou, passando a mencionar, com carinho e ternura, as raízes da nossa amizade.

Com o meu amigo Beniamino Gigli quase me encontrei em situação semelhante, mas circunstâncias felizes me permitiram a sorte de não julgar.

Gigli me entregara o memorial de um amigo de infância num caso de que eu era relator. Lido o memorial, vi que o meu voto lhe teria de ser contrário e senti quanto isso me seria penoso, tratando-se de Gigli, que só uma vez me dirigira um apelo em toda a vida e a quem eu, como apreciador do bel canto, devia as maiores emoções. A sorte, entretanto, me ajudou. Eleito presidente do Tribunal Superior Eleitoral, tive de afastarme temporariamente do Supremo, onde fui substituido por um colega do Tribunal Federal de Recursos. O amigo de Gigli perdeu a questão mas não tive o desprazer de votar contra ele.

São esses os sofrimentos inseparáveis da função judicante. Corresponderia esta, para os homens afetivos como eu, à suma felicidade, se os nossos amigos tivessem sempre razão..., ou se, não tendo, meditassem no conceito de MONTESQUIEU: "A injustiça feita a um é ameaça feita a todos".

O juiz não vive isolado na sociedade, mas, ao contrário, no meio dela, vinculado a relações amistosas, que, se não chegam a constituir a amizade íntima que é motivo legal de suspeição, são a causa de situações torturantes, em que ele tem de optar entre os impulsos do seu coração e os mandamentos da sua consciência.

E no dever de fidelidade a estes últimos, sobrepondo-se a tudo mais, está uma das normas fundamentais a que o juiz deve obediência, sem a qual não existe verdadeiramente juiz, mas um sImulacro que é a sua mesma negação.

E fácil ser juiz, quando não há amigos empenhados na causa a ser julgada.

Mas quando há é que a tarefa do verdadeiro julgador se torna difícil e, por assim dizer, sobre-humana.

Ao fazermos justiça com prazer a bem dos que nos são caros, somos compensados, de alguma sorte, das agruras que padecemos ao ter de fazer justiça com pesar contra aqueles a quem estimamos.

Finalmente, uma retificação: Um dos nossos jornalistas mais ilustres, escrevendo sobre Any disse que ele, convidado, pelo Governador da Bahia, Otávio Mangabeira, a participar das comemorações do centenário do nascimento de Rui Barbosa, foi e não teve a recepção que esperava.

Estou em condições de dar um testemunho seguro: Fui um dos representantes do Supremo Tribunal naquelas comemorações, que começaram a cinco de novembro de 1949. A sete do mesmo mês, Ary completaria 46 anos de idade e, ainda no Rio, nos convidara, a minha mulher e a mim, para o jantar em sua residência na data natalícia. Expliquei-lhe a impossibilidade de comparecermos, porque estariamos então na Bahia e de lá lhe enviamos no dia sete um cabograma.

Vemos, assim, que não faltou com a hospitalidade costumeira ao grande Ary a grande Bahia, tão homenageada por ele em suas músicas, a ponto de provocar ciúme no seu Estado natal, e justamente homenageada, porque nela, como disse Agripino Grieco, a todo instante parece que encontramos as impressões digitais de Deus.

(Luiz Gallotti - Ministro do Supremo Tribunal Federal)