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  De Ary | Sobre Ary

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Temperamento indócil
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Meu canteiro de saudades
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  Meu canteiro de saudades
João Lyra Filho - 0000-00-00

Ary Barroso aninhou-se no meu coração como um pássaro aflito. A aflição provinha do sonoro descompasso entre a voz que deitava no mundo e o mundo desmanchado em sua música. Aquela voz estridulava nos arroubos de suas ambições legitimas e êsse desmancho de mundo refletia a tempestade smorzada nas canções com que se comunicou a todos nós.

Ary foi meu colega de turma; completamos juntos o Curso de Ciências Jurídicas e Sociais. Depois os desportos tomaram conta de nós e nos arrastaram ao revezamento entre astros e abismos. Seus privilégios estiveram sempre no feitiço de suas fábulas. Era fabuloso! Conheci-lhe as venturas e aventuras, além de haver-me identificado com suas tristezas. Suas aventuras, algumas de caráter satânico, lhe expunham os chistes e as chispas.

Ary era muito de rir e gargalhar, mas não era pouco de comover-se e chorar. Os condôminos do seu coração sempre foram numerosos, sendo majoritários os que, não tendo muitos haveres no bolso, possuiam riqueza de sobra na alma. Quando seu sono dobrava a esquina, perdido dentro da noite, o talento faiscava no seu feitiço.

A glória do artista continua a viver na ventura alheia, dentro do tempo e ao longo do espaço, independentemente da morte do semeador. A música do Ary Barroso pereniza-se, indiferente ao agora e ao aqui. Uma bela música, vivida e pensada, constitui a universalidade eterna do sentimento universal de um século.

Lembro-me de mim mesmo, suposto orador do trivial, quando me concentro para ouvir uma canção do Ary. Quem ainda não estiver seguro de que vale a pena trocar a tribuna pela orquestra ouça a gravação de um discurso admirável e, em seguida, ponha a alma no coradouro de uma canção. Ainda agora, ao vir da Europa, o transatlântico encheu-se todo de Ary; sua música povoou o navio. O navio, cheio de gente representativa de todas as etnias, era a síntese cromática da humanidade.

Imagino estar revendo meu amigo morto. Sou um orador aceitável, segundo a opinião que me deixou, e ele sempre será um notável compositor, consoante meu entendimento. Sempre coincidimos na mútua benquerença de quatro décadas e fração, desde 1922, mas brigaram muito nossas posturas de espírito. Curioso! Enquanto meu lápis vai indo, neste papel de minuta, caem-me sobre as letras os cabelos brancos desejosos de testemunhar a verdade!

Não houve semelhança de espírito no cotidiano de nossas vidas, é verdade, mas nunca a comunhão desertou dos nossos sentimentos. Sei um pouco de muitas coisas e ele sempre soube muito de certas coisas. Habituei-me às braçadas, no mar humano do conhecimento, e ele amestrou o fôlego nos mergulhos. Meu espírito é uma espécie de caixa econômica, mas o dele manteve-se como um banco de depósitos. Arrecado grande quantidade de infimos depósitos, ao contrário do Ary, que arrecadou pequena quantidade de depósitos imensos. Tenho muitas contas de valor escasso, há perto de meio século em movimento, ao passo que ele possuiu poucas contas de fabulosos pecúlios. Faço economias para viver na terra e ele entesourou capitais para sobreviver na história. Só me conservarei no tempo enquanto vivo, mas o Ary permanecerá no tempo, mesmo depois de morto. Quando acontecer minha morte, deixarei de ser ouvido. Mas o Ary, ao contrário, continua a plenificar o mundo com sua música.

Meu espaço concentra-se aqui, nesta tebalda dos meus livros; o espaço dele é o universo. Meu tempo é este momento; o tempo do Ary foi ontem, é hoje e será sempre. Meu corpo, amanhã, será condômino de uma necrópole e meu espírito vagará no espaço sidéreo. O corpo do Ary já pertence aquela assembléia de condôminos; mas seu espírito permanece no espaço universal da música. Meu pobre verbo haverá de ser uma pulga desejosa de coçar o silêncio gelado, entregue à paz ascética dos ciprestes, mas a música do Ary embala a eternidade, se minhas lágrimas pudessem ser orquestradas, pediria ao Ary que descesse ao seu encontro para juntá-las numa sonora composição de saudades.

João Lyra Filho (Ministro do Tribunal de Contas do Estado da Guanabara)