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  De Ary | Sobre Ary

A Aquarela do Ary Barroso
José Amadio

Falta de respeito
Mister Eco

Disque "j" para lucrar


Ary Barroso, no espelho, à beira dos 60 anos, solo em tom maior
Reportagem de Souza Lima e Gervásio Batista

Os óculos - A gaita - No Tabuleiro da Baiana - Banho de ervas - Tentativa de resumo
Carlos Heitor Cony

Perdão ridiculariza
Herivelto Martins

Barão da Torre, com muita pressa
Leon Eliachar

A Ordem... Prossegue
Otávio Bevilacqua

 
 
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  Os óculos - A gaita - No Tabuleiro da Baiana - Banho de ervas - Tentativa de resumo
Carlos Heitor Cony - 1963-00-00 - Correio da Manhã

Os óculos - A gaita – No Tabuleiro da Baiana

Julinho era um garoto que sabia coisas, lá pela minha infâncla, numa rua qualquer da Tijuca. Um dia íamos lado a lado quando cruzamos com outro guri, já nem sei mais por que nosso inimigo. Era um guri gorducho, balofo, dois óculos indecentes na cara. Julinho deixou que o guri passasse e gritou:

- Ary Barroso! Ary Barroso!

Corremos para fugir da pedrada. Depois perguntei o que era aquilo. Nunca tinha ouvido aquele nome - e o tom com que Julinho o dissera, parecia ofensivo. A explicação foi grave e incompreensível:

- Quem usa óculos é Ary Barroso!

Essa a primeira noção do Ary.

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Pouco mais tarde, ainda na infância, fui ao armarinho do seu Coelho comprar qualquer coisa. Presenciei o drama: um outro menino queria comprar uma gaita, dava duro para ser entendido pelo dono da loja. O seu Coelho trouxe gaitas de vários tamanhos, feitios e práticas, mas o guri recusava todas. Até que, em desespero, seu Coelho trouxe uma gaitinha - a mais ordinária, talvez, de sua loja.

- É essa?

O guri agarrou-se com aquilo:

- É, sim senhor.

- Mas isso é uma gaita do Ary Barroso!

Segunda noção do Ary: a gaita.

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- Papai - ainda por essa época - gostava de óperas. Depois perdeu a mania, mas naquele tempo aturávamos, eu e a família inteira, uns programas abjetos na base do Gigli e da Claudia Muzzio. Com o pai em casa, o rádio se destinava a coisas e misteres nobres: óperas, prédica do Mons. Henrique de Magalhães e ginástica pela manhã, que todos faziamos, para sermos belos e úteis à Pátria.

Um dia, o velho adormeceu na varanda. O rádio tocava, há horas, uma complicada e sonolenta ópera de Wagner, e o velho, embora não o admitisse, gostava mesmo é da Traviata. Fui ao rádio e mudei a estação, seguro de que o velho já estava dormindo.

A música sensual e redonda envolveu tudo, despertando uma súbita e precoce vontade de também tocar piano. Quando Carmen Miranda e Luis Barbosa começaram a cantar, olhei para o velho, pelas dúvidas: estava acordado.

Rápido, mudei de estação, à cata dos soturnos berros do Lohengrin. Mas o velho disse essa coisa inexplicável:

- Deixa, meu fiiho, deixa aí mesmo.

- Mas é um samba, pai!

- É o Tabuleiro da Baiana, fliho, isso é música da boa, é do Ary Barroso.

Terceira noção: "No Tabuleiro da Balana".

A criança se fez homem e ganhou um amigo. Muita coisa se passou, de lá para cá. Um dia esse amigo morreu. E o adulto escuro de hoje, por fidelidade a um garoto, sentiu que de repente o mundo era menos mundo, as coisas eram menos coisas.

O banho de ervas

O pianista magro tentava a vida. Batia piano onde houvesse piano e cachê. Impetuoso já, os dedos não obedeciam à mecânica apreendida de sua tia materna. Uma distraçao, e já não estava interpretando, estava compondo. Chegou a gravar algumas músicas - uma delas, por sinal, figuraria entre seus maiores sambas futuros: "Vamos deixar de intimidade". Mas o sucesso estava longe ainda.

Um dia - foi o próprio Ary quem me contou, ali no Leme, ao pé do chope - um sujeito apareceu com uns versos:

- Moço, o senhor toca piano?

- Toco, sim senhor.

- Podia me musicar estes versos aqui?

Ary leu os versos, não entendeu nada, mas tacou música assim mesmo. Mais tarde, o homem disse que aquilo seria hino oficial de uma dissidência de uma outra dissidêncla de um terreiro dissidente da macumba. Ary não gostou, mas o mal estava feito.

Daí para cá, a vida piorou. Perdeu contratos, adoeceu, teve dificuldades na Faculdade, o diabo. Até que um dia recebeu a carta anônima: em vários terreiros da cidade e do resto do Brasil faziam trabalhos contra o autor daquele hino. A carta não se limitava à denúncia: chegava ao conselho: pedia que Ary fosse a Niterói, tomar um banho de ervas especialíssimas, umz velha era famosa nisso,

Ary rasgou a carta e continuou insistindo. Tocava por aí - mas compor, até isso estava difícil, os dedos não mais sabiam improvisar. Andava pelas ruas, de cabeça baixa, perseguindo uma melodia que não vinha.

Um dia decidiu. Tomou a barca, saltou em Niterói, de boca em boca localizou a velha.

- O senhor tire a roupa!

Ary era devoto de Noasa Senhora, católico mineiro praticante, nunca se tinha metido em frias assm, embora o banho de descarga não fosse frio, fosse quente, escaldando. Havia ervas e cheiros confusos na enorme tina, que a velha apontou:

- Entre aí.

Ary entrou e a velha rezou, rezou, suplementou o caldo fervente com outras porções, até que liberou a vítima:

- Pode sair. O mal já saiu.

Ary saiu realmente, ressabiado, quis pagar, a velha não aceitou um tostão.

- Foi coisa forte que fizeram contra o senhor, doutor. Olha como está a água.

Ary olhou e não viu nada demais. Tomou outro banho, vestiu-se, a velha abençoou-o:

- Vai, meu filho, tudo sairá bem, agora.

Ary tomou a barca e saltou ali na Praça Quinze. Em frente ao antigo refúgio de bondes havia um aglomerado. Ary chegou perto e soube: uma mulher havia faltado o respeito com outras senhoras que esperavam o bonde. O povo queria linchar a vigarista. Ary ouviu o moleque gritar, a seu lado:

- Dá nela!

Saiu dali com as mãos nos bolsos, tinha a tarde pela frente, era necessário ganhar o cachê e o dia. Vinha cabisbaixo, chutando o ar, quando de repente a melodia começou a vir. Ary não fez caso, enxotou-a, mas ela obstinava em sua cabeça, dando cócegas nos dedos: dá nela, dá nela.

Quando chegou na Casa Artur Napoleão, o piano já estava aberto, os dedos foram râpidos. O sucesso tocou-lhe em seu ombro e nunca mais o abandonou.

Tentativa de resumo

Dizem, foi o acaso que fez o almirante português, ao desviar-se das calmarias das costas africanas, dar com os costados e as naus assinaladas em terras que pareceram aos portuguêses, primeiramente, ilha, depois sede do Clube de Regatas Vasco da Gama. Os eruditos afirmam que os habitantes desta ilha viviam em estado de barbarie e para civilizá-los chegaram mais portuguêses.

E enquanto a civilizaçao não vinha, o português descobriu que o índlo era astuto demais, não queria nada com o trabalho. Como o português também não quisesse nada com o próprio - apelaram para a ignorância: foram buscar na África os bons crioulos que não berravam nem mugiam, mas eram carne de canga e açoite, para o que desse e viesse.

Disso tudo resultou aquilo que um sujeito bem intencionado também poderia chamar de flor amorosa de três raças tristes: o caldeamento de epidermes e pânicos, de gritos e cânticos. O português entrava com sua parte erudita, européia, seu canto já não era puro, trazia misturas árabes, profanações provençais, o diabo. Já a chamada parte inculta entrava com o elemento mais puro: o atabaque, o surdo, os instrumentos que imitavam vozes porque as vozes imitavam instrumentos. O samba estava longe.

Difícil catalogar tudo o que foi e seria: conga, maxixe, maracatu, frevo, côco, jongo, tango, valsa, toada, xiste, modinha, chorinho, volta e meia os franceses e holandeses abriam apetites em cima da costa e deixavam marcas que iam dos meninos de olhos azuis a instrumentos musicais complicados. Um sujeito chamado Napoleão enxotou a corajosa corte portuguêsa da Metrópole e o Rio ganhou corte, cortesões e sábios. Um desses, que se passava por discípulo de Hayan, era um maestro chamado Marcos Portugal. Quase estragou o gênio nativo de um mulato chamado José Maurício Nunes Garcia: a misturada de tantas raças começava a dar resultados e faiscava o gênio. O Brasil tinha música brasileira.

Mas não era, ainda, um Brasil brasileiro. A música popular abria um
flanco enorme, de difíceis contornos, e não produziu sua expressão universal no sentido de ser "uma apta a muitas". Ernesto Nazaré compunha tango e maxixes; Eduardo Souto, amante de Chopin e do piano, fazia valsas. Chiquinha Gonzaga padronizava a marchinha. Um cearense de talento abria o ventagrama e fazia um batuque gostoso e clássico. Nome: Alberto Nepomuceno.

A procura persistia. Todos tinham talento, todos faziam mais ou menos a mesma coisa, mas foi preciso que Mauro de Almeida, e, em parte Ernesto dos Santos, vuIgo "Donga", fizessem um negócio e escrevessem por baixo: SAMBA.

Históricamente, estava encontrada a palavra que designaria a coisa. Mas a coisa não estava devidamente estruturada. Recebera um nome, mas não recebera, ainda, o polimento, não realizara integralmente o ciclo através do qual a arte sai do povo e volta para o povo.

Herdeiro direto de Nazaré, de Souto, bebendo nas raízes do velho regional - Anacleto Medeiros, Sinhô, Pixinguinha, turma do Bando dos Tangarás, Henrique Vogeler, Eduardo das Neyes - o rapaz de Ubá, formado em Direito, pianista alguma escola, faria o amálgama de tudo aquilo. Daria ao samba os elementos finais para a caminhada. Sim, "Aquarela do Brasil" não é o melhor samba do Ary. Nem a "Bachiana nº 5" é a melhor obra de Villa-Lobos. Mas tanto a "Aquarela", como a quinta bachiana, fariam a música do Brasil ganhar mundo e, mais importante que ganhar mundo,
encontrar-se em si mesma, grande, autêntica poderosa e fértil.