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A Aquarela do Ary Barroso José Amadio - 1960-07-23 - O Cruzeiro
Hoje you fazer a aquarela do Ary Barroso. Tentarei usar suas próprias tintas nesta tela de duas páginas: pinceladas de ironia, esboços de sarcasmo, traços de humor. Tonalidades: inteligência e talento. Para melhor composição do quadro: microfone, gongo, piano. E a gaitinha.
Cara & Coração
Sua cara é das mais manjadas do Brasil. Cara comum, de poucos amigos (embora os tenha, profusos). Os anjos, que povoam seus sonhos, devem tocar tuba, e os pastores, que apascentam os rebanhos da sua imaginação, trocaram, creio, a flautinha pelo trombone de vara. Fala como quem está pedindo briga e parece sempre disposto a gongar a humanidade inteira. Ilusão. Muito mais Barroso do que Ary, tem coração de beata realizada. Quer dizer: mole, mole. E do tipo capaz de despir a camisa e entregá-la ao primeiro que estiver buscando felicidade. Represa em si um riacho de boas intenções. As vêzes, abre as comportas. Creio que quando morrer, após boa temporada no purgatório, alcançará o reino dos céus. Trocará o piano pela harpa eólia. Mas São Pedro que se cuide. Ou leva gongo.
Hino & Personalidade
E um dos grandes da nossa música popular de todos os tempos. Na semana passada ganhou um troféu do Departamento de Turismo: melhor compositor brasileiro do ano. Sua Aquarela do Brasil, espécie de hino nacional para exportação, já mereceu setenta diferentes gravações e lhe está rendendo fortuna capaz de proporcionar volta ao mundo em iate, com escala no Havai. Depois que Walt Disney lançou suas composições (filme Alô, Amigos) internalizou-se. Soube aproveitar esse impulso inicial. Tinha com que. Quase tudo o que produz é de boa qualidade.
Em arte o que é bom permanece.
Boêmia & Bar
Sentimental, chora com facilidade e fluência, embora nem todo sentimental seja chorão. Romântico, vibra com violões, serenatas e noites de lua lÃvida. Não sei bem que diferença existe entre romantismo e sentimentalismo na realidade de boêmio. Nem quero saber. Pelo jeito, Ary não deve admitir que um violino capaz de libertar Bach tenha corda de tripa de gato. Quer dizer: ele edifica o belo, o seu belo, e reside nele. Tudo confuso, como a simplicidade. Sei que é grande boêmio, boêmio de categoria e tem profundas identidades com a noite. Ambos se aceitam e, de certo modo, se completam. Adora conversa de bar. Sua esposa (que lhe administra as finanças) jamais conseguiu endenter como pode ficar três, cinco horas, em mesa de bar (onde a presença feminina é apenas ocasional) batendo papo com os amigos.
Mas ele entende.
Irreverência & Inimizade
Acusam-no de irreverente e mal-educado. Protesta. Engatilha-se apenas contra a burrice, o analfabetismo saliente e a mediocridade. Quando é atacado, defende-se: quando ataca, agride. Faz questão de explicar que inimigo mesmo só tem um: Oswaldo Santiago. Considera os outros baratinhos ou insignificantes. De Oswaldo faz questão absoluta de ser inimigo. Cultiva essa inimizade com carinho há 16 anos.
É a sua flor de estufa.
Risque & Surpresa
Cenário: roof do Hotel SemÃramis. Local: Cairo. Época: 1954. Clima: brisa de 20 graus. O que se via olhando para baixo: o Nilo. O que se via olhando para cima: céu estrelado. O que se via ao longe: sugestão de pirâmides. Acompanhantes: eu estava só (não creio que nostágico). O que aconteceu: a crooner da orquestra começou a cantar. Idioma: português (com sotaque, mas em português). O que cantava:
Risque
Bossa & Piano
Ary (será com y ou com i?) nada tem contra a rapaziada da bossanova. Tem a favor: já o ouvi elogiar alguns componentes do grupo. Acha que bossa-nova (na música) é maneira moderna de se dizer coisas antigas. Não sei o que pensa sobre a bossa-nova no jomalismo, nem quero saber, porque o dono dessa jogada sou eu. Seus sambas não nascem: despontam. Em pequeno tinha horror de música porque sua tia Ritinha o obrigava a estudar duas horas de piano diárias. Mal sabia ele que aquelas teclas (amarelas, por certo) seriam degraus que o conduziriam aonde chegou. Aonde chegou? Não sei bem.
Mas ale sabe.
Locução & Mengo
Locutor esportivo há mais de 20 anos, flamengo doente e irremediável (pertence à confraria do Dragão Negro e é diretor social do grande clube) tem um modo todo seu de narrar partidas de futebol. Imagino o que diria hoje, sábado (levamos outra sova do Uruguai, 1 x 0) se estivesse em Montevidéu. Acho que "speaker" não deve demonstrar preferências, mas quando o Flamengo joga, ele torce desbragadamente, embora esteja convencido de que dissimula isso. Tanto que não admitirá minha observação. Sorri. Passa tremendas descomposturas (pelo microfone) nos jogadores, técnicos, juÃzes, gandulas, bandeirinhas e até na bola. Divide os locutores esportivos em três categorias: os que andam na frente da bola, os que acompanham a bola, e os que andam alguns segundos atrás da bola. Situa-se no terceiro naipe. Para anunciar gol utiliza sua famosa gaitinha. Os vascaÃnos (principalmente) alegam que quando o gol é do Mengo, a gaita soa com mais entusiasmo. Considera isso injustiça: afirma que a gaita é imparcial.
Será?
Sino & Sacristia
Nasceu em Ubá. Terra de contrastes. Motivo: também nos legou Thereza de Souza Campos. Criado pela tia Ritinha e pela avó, era esguio e ranzlnza. Hoje, encorpou. Ainda é ranzinza. Era arteiro. Ainda é. Dissimulava com pia discrição as suas artimanhas - hoje não tem mais necessidade disso. Certa noite (de parceria com outro menino) amarrou o rabo de certo cavalo (haverá cavalo incerto?) à corda do sino de uma igreja tida (não sei se havia) como mal-assombrada. Houve um quase pânico na cidade. Fácil imaginar. Instauraram (que verbo cretino) inquérito. Desmascarado, perdeu o tÃtulo de menino mais bem comportado. Queriam-no padre; fizeram-no sacristão. Quando o Papa Pio X morreu, foi obrigado a tocar sino o dia quase inteiro.
O badalo era pesadÃssimo.
Discussão & Fidelidade
Honesto, isso é. Autêntico. Bissexto nas picuinhas. Fiel a si mesmo (o que é importante, mais do que isso: importantÃssimo; mais ainda: fundamental) já foi surpreendido discutindo com a própria sombra por causa da precessão dos equinócios.
Seu reIógio atrasou.
PolÃtica & Esquecimento
Quando está desiludido, não faz tangos: faz sambas. Confessa-se desencantado com a polÃtica. Fala dela com amargura de amante traÃdo. Personifica-a para malhá-la. Transforma-a quase em mulher: ingrata, traiçoeira, volúvel. Isso tudo porque foi verador pela UDN do ex-Distrito Federal. Quem mandou? Reclamava mais do que bode a bordo, ou do que papagaio em areia quente. Sempre foi assim. Sei que, lutou muito pela construção do Maracanã e que se considera responsável por tal obra. Esqueceram. Instituiu a Temporada de Arte Nacional. Esqueceram. Lutou quatro anos para dar duas letras aos oficiais administrativos. Na eleição seguinte, os oficiais (70 deles estiveram em sua casa, na véspera, comerado e bebendo "whisky") o atraiçoaram.
Foi derrotado. |
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