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Ary Barroso - 2004-06-29 - O Jornal

Entrei para as fileiras rubro-negras em 1926 levado pelas mãos de José de Almeida Neto, o famoso zagueiro "Telefone". Integrei-me, desde então, à vida social, política e desportiva do clube. Depois de 33 anos de dedicação incondicional ao Flamengo, orgulho-me de seu passado, dos homens que construíram seus alicerces de grandeza, dos atletas que elevaram seu cartel de triunfos e de tantos e tantos abnegados que, ornados da virtude imarcescível da modéstia, sustentaram o prestígio do clube e o projetaram, como um gigante, no coração e no amor das multidões.

Conheço esses homens e esses atletas, desde a sede da Praia do Flamengo, desde o campo da Payssandú, passando pela Gávea, cuja pedra fundamental assisti ser lançada, pelo "Rio Branco" até os dias de hoje. Sempre senti o clube coeso, unido, como um bloco de granito, seguindo a sua rota inexorável. Havia discussões políticas passageiras, mas não se esgrimia o ódio pessoal. Era um conforto freqüentar-se a sede do grêmio nos seus dias de festas ou de reuniões administrativas. Cada um, dentro de suas possibilidades, dava um pouco de si ao clube, sem transformar sua dedicação em lábaro sectário de propaganda individual. O que se fazia pelo clube; o que se ofertava ao clube, diluía-se na sua vida, incorporava-se ao seu corpo e quem fazia ou dava retornava ao afã de servir, dentro deste sistema fraterno de igualdade aos demais, de humildade natural, dentro da ordem natural de bem servir por dever de servir.

Hoje tudo está completamente modificado. O egoísmo cindiu o clube em grupos. A vaidade abriu penhascos entre os homens. A ignorância afastou do clube as suas tradicionais vigas de sustentação. Não há amor: há vingança. Não há compreensão, há batalha. Não há fraternidade; há ódios. Na figura de um homem só, cristalizou-se uma trajetória de quase 60 anos! Sem ele o Flamengo será a ruína. Sem ele O flamengo não seria nada. Todas as forças que até então sustentavam o prestígio do grêmio, foram absorvidas pela força titânica de um só homem incomparável. E a que chegamos? Chegamos a situação da Roma histórica: enquanto o clube está ardendo entre as chamas da mais dolorosa desassociação, o "homem-só" canta, na lira de sua arrogância sertaneja, as próprias grandezas, as próprias virtudes e os próprios privilégios. E por isso, porque não posso renunciar ao direito que meus títulos no clube me outorgam de participar da vida do clube; e como essa participação é impossível, porque o "homem-só", dentro de seu egoísmo, é o Sol de que ninguém é dado aproximar-se, pela força de sua Luz e pelo grau de sua temperatura, declaro, publicamente, que parei. Desiludido. Desconsolado. Sem esperança e sem fé. Ficarei com a saudade de tanta coisa boa que o clube me proporcionou. De tantos momentos exponenciais de gloria e fastígio. De tantos homens irmãos, de tantos grandes homens que, na sua modéstia, ganharam a imortalidade. Meu título de soçio-proprietário, que me dá a honrosa condição de conselheiro-nato, eu o transferirei ao meu filho. Quem sabe, com a sua juventude, não poderá lutar, com maiores probabilidades de sucesso, pelo retorno do Flamengo aos quadros antigos de compreensão e do entendimento entre os seus homens? Que ele saiba cumprir o seu dever. O Flamengo nunca foi de um "homem-só"!. A bruma seca do momento será varrida, tenho certeza, pelos ventos regeneradores da Verdade. Nesse dia, de longe, estarei vibrando com o clube que jamais sairá do arcano mais puro do meu coração.