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  De Ary | Sobre Ary

Condenado à solidão (crônica)
Ary Barroso

(Carta a esposa Yvonne sobre a viagem aos Estados Unidos)
Ary Barroso

(Carta a esposa - dos Estados Unidos)
Ary Barrozo

Não posso viver sem você. (carta a esposa)
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Memórias de um locutor esportivo
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Vou escrever o Livro Negro do Futebol Brasileiro
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Descrição da casa contruída por Ary Barroso
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Depoimento filmado sobre as contruções irregulares no Rio de Janeiro
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  Condenado à solidão (crônica)
Ary Barroso - 0000-00-00

Não estava nas minhas cogitações vir a público pronunciar-me sobre a tragédia em que mergulhou o C. R. do Flamengo. Mal refeito de pertinaz enfermidade, aconselhou-me o Prof. Aleixo de Brito, meu médico assistente, o máximo de repouso e o mínimo de emoções violentas. Entretanto, amigos, cá estou, por um incoercível imperativo de fidelidade e de respeito. Fidelidade ao nosso próprio clube e respeito à memória daquele que foi, em todas as épocas, o timoneiro sem par, o presidente ideal, o homem feito sacrifício pelo bem do Flamengo, pelas glórias do Flamengo, pela grandeza do Flamengo. Dir-se-á que um cadaver não deve mais influir na vida administrativa de nenhuma instituição. Argumento de materialista grosseiro. Negaçao de uma tradição de amor e de culto aos numes tutelares, aos valentes fundadores, aos que rasgaram atrevidos caminhos pelos quais hoje transita, com vida e com ufania, o C. R. do Flamengo.

Escrevo para protestar contra o incrível passo, contra a chocante resolução do Sr. Fadel Fadel, contratando, de novo, e trazendo, outra vez, para dentro de nosso clube, um técnico que, por seu procedimento, em determinada época da vida rubro-negra, jamais poderia voltar. Aquela noite triste e angustiada que passamos na sua residência, solicitando-lhe que não abandonasse o clube, seus amigos e seus atletas, assim de chôfre, recebiam como resposta, palavras sem corpo e alegações sem base; nunca mais se apagará de minha recordação. O homem não decidia. O homem desconversava. O ambiente trescalava a angústia. Nossos argumentos se transformavam em fumaça, fumaça de charuto e fumaça de engôdo. O sofrimento de Gilberto Cardoso a todos contagiava. Ele acreditava no técnico. Ele tinha um encontro marcado com o técnico na Ilha do Governador. Ele contava com o técnico - E a noite ia-se transformando em madrugada.

Até que, a certa altura, a senhora do técnico, talvez horrorizada com o papel de seu marido, convidou-me a ir até o seu quarto. Fui. Lá, a senhora do técnico abriu seu coração e deixou falar a voz da consciência:

"Ary, não adianta nada vocês apertarem o "velho": ele já é do Vasco!"

Quando voltava à sala, um vulto corria pelo corredor e retornava ao seu lugar entre os amigos. Era o técnico que tinha vindo escutar, à sorrelfa, minha possível reação à fala da esposa. Percebi tudo num segundo. Convidei alguns companheiros a sair. Já na rua lhes revelei o episódio em detalhes. O resto foi a consumação do plano traidor do começo ao fim. O resto foi o desalento momentaneo de Gilberto Cardoso. Homem de fibra e de coragem, que fez das penas e das decepções um buquê de novas esperanças e, sobre as cinzas de um técnico que se foi, construiu o monumento de um nôvo técnico e arrancou para o tricampeonato.

Freitas Solich veio pela obstinação de Gilberto. Pela vontade de Gilberto. Pelo idealismo entusiástico de Gilberto. E Gilberto morreu deixando o Flamengo nas alturas de conquistas maraviihosas, em todos os setores. Morreu, legando ao Flamengo, um patrimônio deslumbrador de taças preciosas, de troféus magníficos, de feitos inimitáveis, mas, acima de tudo, deixou o Flaniengo ardendo, como um vulcão, na alegria do seu povo, na felicidade de seu povo, no delírio de sua torcida.

Depois... ah! depois! Tudo foi sendo destruído. Pela inveja. Pelo despeito. Pela incapacidade. O Flamengo começou a se desfigurar. Gilberto, quando vinha a público, era para cantar vitórias e conquistas. Agora, desfraldava-se a política da miséria e da tristeza. Rádios e jornais gritavam as agruras rubro-negras. Fendiam-se as muralhas das últimas resistências. Problemas. De toda ordem e de todos os lados. Não há dinheiro! gritavam. O clube passou de esportivo por excelencia a casa de negócio onde o "deve e haver" é o termômetro do progresso financeiro.

"Temos urn monte de apartamentos! Temos a sede da praia! Temos a Gávea!... mas, não temos um centavo! E as dificuldades crescendo. E os compromissos se avolumando. Onde está o dinheiro? Ninguém era "José américo!"

Eu boto, o Flarnengo na linha! Não botou! Eu tenho o segredo da mina! Não tinha! A situação pode ser resolvida! Não foi! E os títulos morrendo nos bancos e nas quadras, nos bancos e nos gramados, nos bancos e nas pistas.

E a torcida desanimada e frouxa! Negatividade! Até que conquista o poder o atual presidente. Figura exponencial do clube, dispondo de grande prestígio eleitoral, elemento atuante do "Dragão Negro", experimentado, jovem e conhecendo da vida rubro-negra, foi, amparado pelos seus velhos companheiros, nos jornais, nas rádios e nas televisões, levado ao cargo triunfalmente.

Era a arca da esperança. Sabíamos todos de seus pianos arrojados e salvadores. Com ele à frente, tínhamos o direito de descansar um pouco dos boatos terroristas, das notícias desalentadoras, das informações pessimistas.

A primeira pulga mordeu-nos a orelha quando da constituição da sua diretoria. Hoje, um; amanhã, já era outro. Instabilidade. Perigo à vista. Liderou campanha contra as televisões, sem medir conseqüências e, muito menos, respeitar amigos. Foi cavando, dia a dia, precipícios. Isolou-se egoisticamente.

No basquete, morte! No remo, morte! No futebol, morte! O atletismo salvou-se gloriosamente porque o dede do Presidente lá não foi metido. Só derrotas! Começou a crescer a onda de decepções. De nervosismo. Em vez de convocar as forças vivas do clube e reuni-las num conclave sério, informal, pondo-as a par da realidade, deu início ao regime das entrevistas, trazendo, como seus antecessores, as agruras a público.

O tumor estourou por cima de Solich! Este mesmo Solich que, toda vez que desejava sair, encontrava no atual presidente a mais vigorosa resistência – "Conheço o homem como a palma de minha mão!" - dizia. Nas crises, todos os que pensavamos como o atual presidente convergíamos para sua casa comercial de Copacabana e ali traçavamos as nossas linhas de apoio ao técnico. Fadel Fadel era o general da resistência à saída de Solich!

Como tudo mudou!... Para surpresa desconcertante de todo o clube e de toda a cidade esportiva, Solich, em viagem com o quadro de profissionais, recebe, pelas costas, o golpe, exatamente daquele que era a segurança de sua permanência. E, para maior iniqüidade, traz de volta ao Flamengo o técnico que embaíra a paciência e a boa fé de Gilberto Cardoso! Por incrível que pareça, está de contrato assinado com o C. R. do Flamengo o treinador Flávio Costa!

Será este o meu Flamengo? Será este o Flamengo que nunca transigiu nos momentos em que está em jôgo a sua História?

Será este o Flamengo de Gilberto Cardoso?

Será este o Flamengo dos exemplos dignificantes e das atitudes honestas? Não! Não é! De modo nenhum! Este que aí está é o FIamengo de Fadel Fadel. Que não respeitou velhas amizades e que tripudiou sobre a memória de Gilberto Cardoso.

Pois que fique com o "seu" Flamengo, Sr. Presidente, que nós, seus ex-amigos, iremos para outro lado. Esperar a hora do ajuste de contas. Por enquanto, Sr. Presidente, tenho a Ihe dizer o seguinte:

"Parece que esse cargo possui um veneno terrível que leva o seu eventual ocupante a perder até a compostura. Raríssimos os que conseguiram se manter imunes. O que, lamentavelmente, não é o seu caso. Mais cedo do que era lícito esperar-se, você contaminou-se por inteiro e agora, para constrangimento e tristeza de seus mais próximos amigos, não passa de um ingrato e mal-agradecido. Perdeu os colegas de tantas lutas gloriosas e tripudiou sobre a respeitável memória daquele que há de se constituir, para nós outros, exemplo dignificante e paradigma de homem bom, reto e dedicado.

Você, presidente quando sair dessa Presidência, entrará para o negro mundo da solidão. Os seus ferrenhos inimigos de sempre não modificarão suas posições e você não encontrará mais a luz do convívio e da solidariedade dos velhos companheiros. Nada mais triste, nesta vida, que a vida em solidão. Nada se constrói de objetivo e eterno sobre os destroços de antigos afetos. Medite, presidente, nas palavras de Zacarias referindo-se ao castigo dos impenitentes:

-"Ai do pastor inútil que abandona o rebanho! A espada cairá sobre o seu braço e seus olhos se escurecerão completamente".