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  De Ary | Sobre Ary

E desapareceu no turbilhão da galeria
Carlos Heitor Cony

Guinga sobre Ary Barroso
Guinga

Coqueiro que dá coco. Um compositor genial que não acreditava nisso.
Pedro Bloch

Ary Barroso – Aquarela de um artista
Mauricio Macline

A. B.
Álvaro Armando

Roteiro de Ary
Fernando Lobo

Ary Barroso com os trabalhistas? - O popular locutor está entre a U.D.N. e o P.T.B.
Caspary

Rádio
Rachel de Queiroz

 
 
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  E desapareceu no turbilhão da galeria
Carlos Heitor Cony - 0000-00-00

Um lugar-comum, na crítica de nossa música popular, considera Ary Barroso um péssimo letrista, na mesma medida em que o coloca entre os nossos maiores—senão o maior—compositor brasileiro. Deve-se esse julgamento consensual ao desastroso “coqueiro que dá coco”, que não chegou a prejudicar sua obra mais famosa, recentemente escolhida por um tribunal de entendidos como a música do século.

Bem verdade que Ary gostava de coisas assim. Um coqueiro devia dar coco da mesma forma que ele cantava o “Brasil brasileiro”—que afinal foi aceito como uma das melhores definições de nossa terra e de nossa gente. Seria forçar a barra situá-lo entre os bons letristas como Noel Rosa, Orestes Barbosa, Luiz Peixoto, Lamartine Babo, Chico Buarque, Lupicínio Rodrigues, Caetano Veloso e Vinicius de Moraes.

Os melhores versos do imenso repertório de Ary Barroso ficaram por conta de Luiz Peixoto e Lamartine Babo, bastando lembrar as antológicas “Maria” e “No Rancho Fundo”. Mesmo assim, o compositor mineiro é autor de uma das melhores letras de nosso patrimônio popular.

Apesar de nascido em Ubá, deve-se a ele a internacionalização da Bahia como tema musical, podendo-se mesmo afirmar, como o faz Ruy Castro, que nem Caymmi nem a grande geração de baianos ilustres cantaram e divulgaram a chamada “boa terra” como Ary o fez com amplo sucesso, que até hoje perdura.

Citemos, como exemplos bastantes, “Na Baixa do Sapateiro” e “Quindins de Iaiá”, que correram o mundo num musical de Walt Disney com o Pato Donald e Zé Carioca. Sem esquecer “No Tabuleiro da Baiana”, o primeiro diálogo entre o piano erudito e o regional da tradição fuleira (pandeiro, cavaquinho e violão), clássico regravado diversas vezes e merecedor de versão sinfônica com a orquestra Boston Pops, arranjo de Morton Gould e regência de Arthur Fiedler. (A mesma dupla que também daria vestimenta sinfônica a “Aquarela do Brasil”.)

Mas a letra extraordinária a que me refiro nada tem de sua fase baiana ou patrioteira. Perseguindo um tipo comum de nosso imaginário popular, o malandro carioca que tanto comparece em Noel Rosa, Geraldo Pereira, Wilson Batista, Ismael Silva e Chico Buarque, ele nos deixou o perfil mais bem-acabado desse cara de camisa amarela e reco-reco na mão, que depois do Carnaval só volta para casa na quarta-feira, pedindo um copo de água com bicarbonato—um genérico de antigamente, que hoje conhecemos em versões industrializadas, como o Sonrisal e o Alka-Seltzer.

“Camisa Amarela” corria o risco de se tornar um sucesso datado, pois faz referências a duas músicas da época em que foi gravada, por sinal, dois clássicos do Carnaval de todos os tempos: “A Jardineira” e “Florisbela”, sucessos que se tornaram históricos na voz de Orlando Silva.

Além disso, na sua melhor passagem, cita o “turbilhão da Galeria”, que não existe mais, aquele cruzamento de ruas internas que formavam o centro do centro do Carnaval carioca, onde os bondes da zona sul faziam o retorno que, mais tarde, com o desaparecimento da Galeria Cruzeiro e do hotel Avenida, mudou-se para o ponto terminal no Largo da Carioca, apropriadamente chamado de “o tabuleiro da baiana”.

Num certo sentido, havia um Rio de Janeiro assinado por Ary Barroso, que comandava o programa de calouros mais famoso do rádio brasileiro. E nos campos de futebol alimentava o mito rubro-negro, ajudando a criar não apenas a torcida, mas a psicologia do torcedor do Flamengo.

Inacreditável como ele conseguia transmitir as partidas de seu clube preferido. Em momentos dramáticos, quando ia ser cobrado um pênalti contra o time que ele amava, Ary avisava a seus ouvintes: “Pênalti contra o Flamengo. Não quero nem olhar!”. E não olhava mesmo. A gaitinha de sopro com que ele fazia a trilha musical do placar, longa e jubilosa quando o gol era a favor, emitia um irritado e brevíssimo som, que mais parecia o apito de um juiz contrariado. E Ary era o locutor esportivo de maior audiência em seu tempo, só mais tarde superado por profissionais que procuravam ser isentos e completos, como Oduvaldo Cozzi e Luiz Mendes.

Não vou transcrever a letra de “Camisa Amarela”, que já traduzi para o italiano, a pedido de um colecionador da obra de Ary Barroso, o meu amigo Alfredo, dono do restaurante homônimo, que considera Ary mais importante do que Verdi e Puccini.

Mas sempre que o meu pensamento derrapa, lembro dois versos da letra de Ary.

Depois de encontrar na avenida o seu pedaço de camisa amarela, a mulher convida-o a voltar para casa em sua companhia. Exibindo um sorriso de ironia, o pedaço “desapareceu no turbilhão da Galeria”.

É por aí mesmo. Esse sorriso de ironia e o turbilhão da Galeria que engole sonhos e metas estão todos nesse trecho de um samba do velho Carnaval carioca. Toda vez que encontro ou penso encontrar o que procuro, o que busco com algum desespero, sei que haverá um sorriso de ironia antecedendo o sumiço final, a definitiva perda no imenso, no sempre renovado turbilhão de uma galeria que não existe mais.