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Armando Nogueira - 2003-07-27 - Estadão

O Rio reencontra Ary Barroso, na festa Tim de Música Popular, no Teatro Municipal. Fui um dos apresentadores da noite. Sorte minha, escalado que fui pra anunciar os premiados, ao lado da atriz Camila Pitanga, nome e sobrenome que encerram, em plenitude, a beleza, a doçura e a elegância dessa bela mulher, certamente, uma das mais bem-acabadas criações de Deus.

Música e futebol, as duas grandes paixões de Ary, perpassam o roteiro da festa. Orquestra e cantores vão comprovando a riqueza melódica, harmônica e rítmica da obra que melhor retrata este País, "terra boa e formosa", que Ary tornaria mais brasileira ainda na imortal Aquarela do Brasil. Este é o ano do centenário de nascimento de Ary, o primeiro músico brasileiro a ser cortejado nos Estados Unidos, de onde voltaria sem trazer na bagagem artística o mais leve sotaque da música americana. Até o fim da vida, Ary foi fiel à lira brasileira, da canção mais romântica ao samba de telecoteco.

Tinha, por isso, uma certa má vontade com a bossa nova.

Além do Ary musical, conheci outros: o animador de programas de rádio e tevê, o político e, principalmente, o Ary esportivo. Era alucinado pelo Flamengo. Foi locutor de futebol. Irradiava o jogo com uma linguagem simples e gramaticalmente impecável. Na hora do gol, porém, não gritava como faz até hoje o narrador do rádio. Aliás, quero deixar claro que, por mim, eu prefiro o gol, assim mesmo, gritado. Quanto mais esgoelado, melhor. Me emociona mais o gol estridente, que ressoa pelo ar como uma infindável interjeição.

Nem por isso a transmissão de Ary deixava de ser uma delícia. Era originalíssima. Ele culminava cada gol escovando nos lábios uma gaitinha prosaica: friu, friu, pra lá e pra cá, do tom mais grave ao mais agudo. É o gol com trilha sonora.

Dos poucos encontros pessoais que tive com Ary, guardo, límpida, a recordação de uma festa de Natal da crônica esportiva no Clube Caiçaras, no Rio. Ele dava uma canja ao piano, cantando bem baixinho, como se só pra ele mesmo... "pra machucar meu coração..." Debruçado ao piano, eu me deliciava.

Me lembro de um samba em que Ary, pungente, se queixava de uma certa Rosinha. Decorei letra e música, depois de ficar sabendo, ali mesmo, pelo próprio Ary, numa inesperada confidência, que aquela canção jamais tinha sido gravada.

Nem seria, creio eu, pois sempre que cantarolo essa canção pra alguém versado em Ary, ninguém conhece: "Quando eu passei pela sua porta/ Você bateu com a janela/ Me maltratou demais, me desmereceu / Não quero mais nada/ Rosinha, o nosso amor morreu." Ary e seus mil amores musicais.

De sua desvairada paixão pelo Flamengo, lembro apenas que, quando o time ganhou o tricampeonato, em 1944, ele abandonou o microfone, 6 minutos antes do fim do jogo e foi celebrar o título, aos prantos, na beira do campo.

Ary Barroso morreu, de noite, no domingo de Carnaval de 1964, no justo momento em que a Escola de Samba Império Serrano, sem saber de nada, desfilava na avenida com o enredo Aquarela do Brasil.