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O centenário de Ary


Noções, lições e emoções de Ary Barroso (1)


 
 
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  A cultura brasileira segundo Ari Barroso
Ubiratan Brasil - 2003-03-01 - Estadão

O escritor Antonio Olinto pretende passar o carnaval trancado em seu apartamento, em Copacabana, no Rio. Rodeado de anotações e reminiscências, ele se permitirá escutar sambas e marchinhas de apenas um compositor, Ari Barroso, sobre quem está terminando um rigoroso ensaio.

"Mais que uma biografia, pretendo fazer uma exaltação ao seu trabalho pela cultura brasileira", conta Olinto, que pretende, na terça-feira, colocar o ponto final em Ari Barroso - Uma Paixão Brasileira, livro que será lançado pela editora Mondrian em maio, durante a Bienal do Rio. A obra figura entre as homenagens a Barroso, que morreu em 1964, mas completaria 100 anos em novembro.

Aos 83, Olinto recorda-se dos momentos vividos com o compositor de Aquarela do Brasil e No Rancho Fundo, músicas que certamente figuram na lista das melhores já compostas no País. "Nascemos na mesma cidade, a mineira Ubá, e ele trabalhou como pianista no cinema do meu pai", comenta o escritor, membro da Academia Brasileira de Letras. "Ari era não apenas um compositor genial como, trabalhando em outras áreas, conseguiu suplantar a própria obra, atuando como locutor de rádio, pianista e vereador."

Olinto foi convidado pelo ministro da Cultura, Gilberto Gil, a presidir a Comissão Nacional que vai definir ações e eventos destinados a celebrar a memória de Barroso. Além do escritor, o grupo é formado, entre outros nomes, pela filha do homenageado, Mariúza Barroso Salomão. "Ari tornou-se um dos primeiros e grandes cronistas da paisagem nacional, dos costumes e do jeito brasileiro de ser, a partir do momento em que o rádio e a televisão, os grandes meios de comunicação do século 20, surgem no Brasil", afirma Gil.

"A comissão vai mais aprovar do que organizar projetos", conta o escritor, lembrando que o ministério racionaliza o uso de suas verbas. Assim, será construído um memorial em Ubá, além da instalação de centros de música popular em São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Salvador, todos levando o nome do compositor. Até mesmo as mais simples homenagens são bem-vindas - desde o início do ano, por exemplo, uma rádio mineira, a Inconfidência, veicula diariamente seis músicas de Ari Barroso, sempre às 11 horas, com promessa de sustentar o programa até o dia 31 de dezembro. "É uma ótima iniciativa, pois permite aos ouvintes mais jovens descobrirem e conhecer toda a obra do compositor e não apenas as mais famosas", comemora Olinto.

Em seu livro, o escritor não vai se preocupar em revelar histórias desconhecidas, pois reconhece que a missão foi bem executada por Sérgio Cabral que, em 1993, lançou No Tempo de Ari Barroso (Lumiar), um rico painel da música popular brasileira do século passado, em que o compositor figura na comissão de frente. "Pretendo relembrar todos os fatos que se tornaram folclóricos, especialmente os que acompanhei pessoalmente."

Um dos mais antigos conta a iniciação musical de Barroso - órfão de pai e mãe desde a infância, foi criado por mulheres (a avó e a tia maternas) com métodos nada modernos. Aos 8 anos, menino de classe média, feio, emburrado e brigão, ele começou a aprender piano com uma tia, Ritinha, que punha um pires em sua mão. "Se derrubasse antes de percorrer toda a escala, Ari apanhava com vara de marmelo da tia", conta Olinto. "Ele ficava furioso com isso, mas, anos depois, quando tocava piano em cinemas e teatros, Ari reconhecia que era graças às varadas que aprendeu a tocar o instrumento que lhe dava sustento."

O primeiro contato entre eles aconteceu no cinema do pai de Olinto, onde Ritinha levou o sobrinho para tocar piano enquanto eram projetados filmes mudos. "Eu era garoto, mas assisti a diversas sessões em que menos me preocupava com o filme e mais com aquelas mãos que batiam alucinadas no teclado", conta Olinto. "Ele já era um grande músico."

Dá nela! - Antonio Olinto ainda se surpreende com a forma com que Ari Barroso transformava momentos banais em grandes composições. No fim da década de 20, por exemplo, o músico caminhava na Praça 15, no Rio, quando observou uma mulher louca, esbravejando contra as pessoas. "De repente, um homem gritou: 'Dá nela!'. A forma como disse aquilo ficou martelando na cabeça do Ary até ele compor a marchinha Dá Nela ('essa mulher há muito tempo me provoca'), um dos maiores sucessos do início dos anos 30", conta.

Compositor brilhante, Ari Barroso foi um sujeito ao mesmo tempo irritado e sarcástico, o que lhe permitiu participar de um arsenal de histórias e casos que o tornou folclórico. Olinto sabe disso e pretende ressaltar, em seu ensaio, o homem que não desconhecia que arte e vida não se separam. "Ele era nacionalista: utilizou a palavra 'Brasil' 58 vezes em sua carreira e isso foi mal interpretado como ufanismo barato", contesta o escritor. "Quando dizia 'Meu Brasil brasileiro', Ari pretendia juntar o País ao cidadão."

O alvo principal dos detratores é Aquarela do Brasil, famosa no mundo inteiro (rebatizada nos Estados Unidos como Brazil, pertence ao seleto grupo de canções com mais de dois milhões de execuções em solo americano) e que consagrou, em outubro de 1939, na voz de um Francisco Alves ainda no apogeu, o samba-exaltação, gênero que ajudou a criar, marcado por letras de cunho patriótico.

Olinto nega que a música foi criada por encomenda do Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, do governo Getúlio Vargas. "Ela nasceu, na verdade, em um momento de inquietação." Boêmio confesso, Ari Barroso irritou-se uma noite em que não pôde sair por conta de uma tempestade.

Resmungando com a mulher Ivone e o cunhado Antônio em seu apartamento no Leme, ele refugiou-se no piano. Dedilhou algumas notas, fez algumas anotações e, pronto, surgiu Aquarela do Brasil.

"O mais incrível é que, mesmo depois de tomar um pouco de vinho, Ari continuava emburrado e, voltando ao piano, compôs Três Lágrimas", conta Olinto. "Tudo isso graças a uma noite de chuva."

O perfeccionismo de Ari com a música estendia-se ao seu programa de rádio Calouros em Desfile que, muitas vezes, desembocava em um show de humor - o compositor exigia que os candidatos soubessem o nome dos autores das músicas. E, se sua severidade excessiva freou talentos como Nélson Gonçalves, a aguçada intuição musical revelou nomes definitivos como Luís Gonzaga, Elza Soares, Miltinho, Zaira Rodrigues e, especialmente, Lúcio Alves e Ângela Maria.

Além de consolidar os programa de calouros e importar dos Estados Unidos a fórmula do seu Toque Maestro, em que artistas tinham de saber o título e os autores das músicas tocadas, Ari Barroso consagrou-se também como o locutor da multidões. Flamenguista doente, não aceitava as derrotas do time, transformando as transmissões dos jogos em verdadeiras odes rubro-negras.

"Ele foi goleiro no time de Ubá e atuava de óculos", diverte-se Olinto, lembrando ainda da famosa gaitinha que o acompanhava nas locuções.

Começou a usá-la em 1938 e servia para dar ênfase ao acontecimento do gol, transformando em sua marca registrada. Antes, testou sirenes, apitos e flautinhas até atingir o som ideal. A paixão pelo Flamengo e a seleção brasileira, porém, impossibilitava uma imparcialidade. Em um jogo contra o Vasco, na final do Campeonato Carioca de 1944, o flamenguista Valido fez o gol da vitória aos 41 minutos do segundo tempo, garantindo o tricampeonato.

Eufórico, Barroso abandonou a transmissão e foi comemorar no gramado. "Ele também não suportava o ataque adversário e, quando isso acontecia, gritava no rádio: 'Ih, eu não quero nem olhar!'", conta Olinto.

A paixão era tamanha que, convidado por Walt Disney para dirigir o departamento musical de seus estúdios ("Ele impressionou os americanos pois, além de tocar bem piano, lia partituras, algo raro naquelas bandas"), na década de 40, Barroso recusou justificando que na América não havia Flamengo. "Na verdade, ele precisava do ambiente brasileiro para se inspirar."

E o Brasil, para o compositor, compreendia Ubá, Rio e também a Bahia - basta lembrar No Tabuleiro da Baiana, Na Baixa do Sapateiro ou Quando Eu Penso na Bahia. Sua única frustração foi não conseguir a reeleição como vereador pelo Rio de Janeiro. Empossado em 1946, travou históricos duelos verbais com o também udenista Carlos Lacerda, momentos em que a Câmara Municipal lotava.

"Sua grande vitória foi aprovar a construção do Maracanã para o centro da cidade e não em Jacarepaguá, como queria Lacerda", comenta Olinto, que não esconde a emoção durante o carnaval.

Foi em um domingo de folia, a 9 de fevereiro de 1964, que Ari morreu de cirrose hepática. No mesmo dia, o Império Serrano desfilou com o enredo Aquarela Brasileira, em sua homenagem. "Durante o velório, a igreja foi tomada por arlequins e colombinas, que vieram chorar pelo seu ídolo."