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  Minha luta
Ary Barroso - 2004-06-29

Hoje, que estamos já em pleno ano novo, desejo convidar meus leitores para uma viagem ao passado, não com o fim de lhes mostrar ruínas históricas ou lugares santos, mas, para conversarmos, ao longo do caminho sobre episódios marcantes da minha vida. Dirão vocês: "que é que temos com a vida desse velho?". A resposta é pedido de paciência e resignação. Minha vida não foi vida no sentido vegetativo da coisa. Minha vida foi uma luta terrível, obstinada, penosa. Minhas armas de defesa foram: idealismo, escrúpulo, renúncia, trabalho, caráter, produção e, acima de tudo, fé. Fé inquebrantável! Com ela, consegui superar incompreensões, transpor abismos, galgar alturas, esmagar a maledicência e sair do outro lado com a cabeça erguida, a consciência limpa e as mãos incólumes ao crime. É uma contribuição, modesta - bem sei - a essa juventude encharcada de materialismo, dominada pela frivolidade, sem rumo e que, inspirada no imediatismo, pensa que o mundo é só o dia que passa e que o "futuro, a Deus pertence". Fórmula negativa de viver, já que há enorme diferença entre "viver" e "deixar-se viver". Viver - é plantar a semente, cuidar da árvore, colher os frutos, matar a fome. "Deixar-se viver" - é repetir o destino do tronco que a corrente carrega ninguém sabe para onde e para que, acabando às vezes engastalhando entre seixos ou largado na planície, apodrecendo à intempérie, definitivamente inútil. Deixemos, porém, a filosofia de bolso e vamos iniciar a travessia:

- INFÂNCIA - Minha mãe morreu com vinte e um anos de idade, num mês de maio. Meu pai, com trinta e um, num mês de julho, do mesmo ano. Fiquei com seis anos sob a proteção de minha avó materna e de minha tia Ritinha, ambas pobres, morando numa casa velha, do sr. Aroeira. Estudei as primeiras letras numa escola pública dirigida por dona Guida Solero, naqueles longes, solteira e muito bonita. Aprendíamos tabuada cantando. Mais tarde, passei ao Externato Mineiro, do professor Cícero Galindo, homem enérgico, bom educador. Eu era um "peralta", como dizia, mas, bom aluno. Nunca tomei bomba. Terminado o curso desse Externato, transferi-me para o Ginásio São José, do famoso professor "Fecas". Antigamente faziam-se exames, requerendo. No meu primeiro ano de ginásio, requeri logo quatro exames: português, francês, inglês e geografia. Por causa da epidemia da "espanhola", o governo baixou um decreto considerando aprovados nas matérias requeridas, todos os estudantes do Brasil! No ano seguinte, requeri mais quatro, porém já no Ginásio de Viçosa, sob a direção do não menos famoso educador dr. Arnaldo Carneiro. Nesse ginásio era corneteiro da "banda de clarins" da Linha de Tiro. Ora, aprendendo piano com minha tia e tocando clarim, ia, insensivelmente fortalecendo meus pendores artísticos. No ano seguinte, ou seja o último de minha carreira ginasial, corri três ginásios: o "Rio Branco", de onde fui convidado a me retirar, porque uma noite pulei a janela para ir a um baile; o de Leopoldina, em virtude de uma farra tremenda que fizemos, o Kleber Piedade e eu e, finalmente, o de Cataguases, onde Antônio Amaro, o inesquecível mestre, conseguiu dominar um pouco "meus exageros e minhas doideiras" (sic). De Cataguases vim estudar aqui no Rio, na velha Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro.

- JUVENTUDE - Depois de aprovado no exame vestibular, matriculei-me na Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. Fui morar na pensão da rua Corrêa Dutra, 81. Pagava 150 cruzeiros por mês, dois num quarto. Meu companheiro era o Evaristo de Freitas Castro, depois gerente do antigo Cassino da Urca. Conheci, na pensão, as seguintes pessoas: Regina Maura, naquele tempo recém-casada com um senhor Alexandre, de Juiz de Fora, hoje deputada em São Paulo; Nenê Baroukel e familia; Ernani Irajá e família; sempre bem vestido e irrepreensível no penteado, o acadêmico Genival Londres: Edgar Estrela, saudoso amigo. Como o tempo passa!... Foram meus colegas, na Faculdade, Luiz Galoti, Mendonça, João Martins de Oliveira, Gastão Soares de Moura Filho, Nonato Cruz, João Lira Filho, Odilon de Azevedo, Taques Horta - esses os mais chegados. Depois, por dificuldades financeiras, atrasei-me e vim a me formar com outra turma, entre os quais figuravam o cantor Mário Reis, Frota Aguiar, etc. etc… Meus primeiros e segundo anos de estudante correram mais ou menos tranqüilos. Até que terminou a "grana". Começou ai, verdadeiramente, minha luta. Fiz-me pianista profissional. Estreei tocando em cinema, na sala de projeção, no Cinema Íris. Depois, fiz parte da orquestra do Sebastião, tocando na sala de espera do antigo Teatro Carlos Gomes, onde a Companhia Alda Garrido, levava com retumbante sucesso a burleta de Freire Júnior "Luar de Paquetá". Daí, passei-me para a orquestra do J. Thomaz, na sala de espera do Rialto. Comecei, então, a ser conhecido como "pianista-jazz". Do Rialto, transferimo-nos para o cinema Central, do grande empresário Pinfilde, que nos dava fita e palco. Foi quando meu ordenado cresceu: vinte e oito mil réis por dia. Fazíamos bailes, ganhando eu dez mil réis por hora!... Depois galguei o cimo de minha carreira integrando a famosa "Jazz-band Sul-Americana" de Romeu Silva. Era a orquestra de alta roda. Tocávamos nos principais clubes da cidade: Country Club, Fluminense, América, C.R. Botafogo, Jockey Club, Tijuca, Guanabara e outros. Quando Romeu Levou sua orquestra para a Europa, desliguei-me do conjunto. Fui tocar, então, em Poços de Caldas, no Bar do Ponto, do Nico. Éramos nove, dos quais vivos estamos o pistonista Waldemiro, o saxofonista Bacelar e eu. Os outros, morreram. Chegou a época de exames na Faculdade e eu, sem dinheiro, tive de tomar emprestado de um músico, velho funcionário da Imprensa Nacional, de nome André, setecentos e cinqüenta cruzeiros, tendo como fiador o meu então diretor de orquestra Zé Rodrigues, pagando cinqüenta cruzeiros de juros por mês. Feitos os exames fiquei por aqui mesmo. Fui contratado pelo Teatro Recreio, como compositor e maestro ensaiador. Foi quando conheci Marques Porto, Luiz Peixoto, Olegário Mariano, Gilberto de Andrade, José do Patrocínio Filho, Carlos Bittencourt, dando inicio à segunda fase de minha juventude. Estávamos por volta de 1928!. No Teatro Recreio, cujo empresário Antônio Neves foi, mais tarde, meu padrinho de casamento, comecei musicando a revista de Olegário Mariano - "Laranja da China". Primeiras figuras: Mesquitinha, Palitos, Oscar Soares, Manoel Pêra, Aracy Cortes, Tina de Jarque, Isabelita Ruiz, Olga Navarro, um rosário de grandes figuras. Aracy Cortes foi a criadora de inúmeros sambas que escrevi: - Vou à Penha, Vamos deixar de Intimidade, Tu qué tomá meu home, Vá cumprir o teu destino, Meu companheiro, Gira, etc.

No final do prólogo de "Laranja da China", o grande Mesquitinha aparecia cantando meu samba "Oba!", vestido de mulher. Outras revistas se sucederam: "Banco do Brasil", "Ai, Teresa! ", "Sou do balacobaco", "Vai com fé", "A melhor das três", "Brasil do amor". Em todas, havia músicas de minha autoria. Em "Brasil do amor" deu-se a estréia de Silvio Caldas, cantando com retumbante êxito, o samba "Faceira". Silvio era magrinho, sem cancha de palco, mas, ativo e inteligente. Apareceu de branco, camisa de malandro, chapéu de palha e sapateando como ninguém. O primeiro ordenado de Silvio foram mil e quinhentos cruzeiros mensais!. Do palco do "Recreio" Silvio projetou-se à imortalidade. A despeito de minha intensa atividade teatral, até 1929 não conseguira impor-me no conceito popular. Somente dois sambas vieram para a boca do povo, mesmo assim, de forma discreta: Vou à Penha e Vamos deixar de intimidade, gravado por Mário Reis. Só em 1930, quando venci o concurso da Casa Edson com a marchinha "Dá Nela" vim a tomar o chamado "banho da popularidade". O Brasil inteiro cantou esse estribilho:

"Fala, língua de trapo
Pois da tua boca
Não escapo".

Sobre esse certame tenho coisas interessantes a contar. Desde aqueles tempos que concurso de música carnavalesca era à base de "marmelada". O inolvidável Eduardo Souto - glória legítima de nossa terra! - vinha insistindo para que concorresse. Resistia. As inscrições terminariam impreterivelmente à meia noite do dia 30 de dezembro de 1929. Pois, faltando cinco minutos para o desfecho, resolvi entrar com minha marcha. De não sei quantas músicas foram selecionadas para a prova pública final, cinco, entre as quais a minha. Chegou a grande noite. Mesmo chovendo a cântaros, o velho Teatro Lírico ficou superlotado. No grande palco, a Orquestra de Simon Boutman: vinte e tantos músicos. O cantor oficial foi Francisco Alves. Por ordem alfabética as cinco músicas iam sendo executadas. Em geral bem recebidas. Quando, porem, chegou a vez de "Dá Nela", o teatro veio abaixo, e na repetição, o público já sabia do cór. Depois da execuções procedeu-se à votação, ou melhor, ao recolhimento das cédulas, já que, à entrada, cada espectador recebia uma. Os trabalhos de apuração correram confusos e demorados. O teatro inteiro mostrava-se já impaciente. Até que Fred Figner, pessoalmente, saiu de sua frisa e foi saber o que estava se passando. Era o seguinte: minha marcha obtivera, digamos, mil votos para primeiro lugar e mil e quinhentos para segundo. O samba "Não chora, neném", novecentos para primeiro e mil e cem para segundo. Era um prêmio para cada música. O regulamento do concurso dizia que eram cinco lugares para cinco músicas, não podendo a mesma composição ganhar dois lugares. Queriam me desclassificar do primeiro posto alegando que eu recebera mais votação para segundo lugar, conquanto fôra mais votado para primeiro lugar que o meu adversário. Quem decidiu foi Fred Figner: Primeiro, "Dá Nela"; segundo: "Não chora, neném". Quando foi anunciado o "veredictum" estrugiram aplausos de todos os lados. Meus nervos lacearam. Carregaram-me. Recebi cinco mil cruzeiros de prêmio! O prêmio não significava coisa nenhuma, já que ali no velho Lírico, naquela noite de janeiro de 1930, ganhei coragem e meti os peitos na vida. Desinteressadamente, foram ferrenhos "cabos eleitorais" do meu triunfo: Luiz Iglésias, Assunção, Carambola e o saudoso compositor Wantuil de Carvalho (Sou da Fuzarca). Com o dinheiro do prêmio, casei-me. No teatro, foi onde apresentei meus maiores êxitos, bem entendido, da minha segunda fase de compositor. Interpretaram esses sambas: Aracy Cortes, Otilia Amorim, Silvio Caldas, Margarida Max, Luisa Fonseca, Grande Otelo, Carmem Miranda e tantas outras figuras de proa do cancioneiro pátrio. O primeiro movimento de oposição à minha carreira, foi deflagrado pelo saudoso Sinhô. Em face do sucesso da marcha "Dá Nela", Sinhô lançou o samba "Dá Nele", no qual dizia: "esses mineiros vem pra cá com a mania de abafar". O primeiro aborrecimento sério que tive foi provocado pelo seguinte fato: Margarida Max cantava na revista "É do balacobaco" o samba "Na grota funda" com palavras do grande J. Carlos. Na estréia esteve presente Lamartine Babo. Ouviu a música e imediatamente fez outra letra, cantando no popularíssimo programa da radio da "Educadora" que era transmitido da "Casa do Disco", ali na rua Chile, "Na grota funda" morreu e nasceu "No rancho fundo". J. Carlos nunca me perdoou aquilo que ele chamou de "traição" da minha parte. Juro, até hoje, que só vim a saber da estória depois que a música já caíra na boca do povo com a letra de Lamartine. Minha primeira grande decepção foi um concurso de música popular, patrocinado por Dona Darcy Vargas, no campo de América F. C. O concurso não era carnavalesco. Chamava-se "Noite da Música Popular Brasileira". Podiam-se inscrever marchas, sambas, canções, valsas etc. etc.. Inscrevi-me com "Aquarela do Brasil" e "Iaiá Boneca". Não me deram nem uma pequenina "menção honrosa". Na "comissão" estavam Luiz Peixoto, Pixinguinha, Vila Lobos e outros. O alegado foi a vitória do ponto de vista de Vila Lobos que não "admitia civismo em samba". Aquarela e Iaiá Boneca foram consideradas "músicas cívicas" (!). Ganhou o samba "Seu Oscar". Depois, outras decepções se seguiram quando perdi outros concursos com melodias consagradas retumbantemente pelo povo: "Foi Ela", "Grau Dez", "Segura esta mulher", "O trolinho". Até em São Paulo houve "pinimba" contra mim. Fiz uma marchinha "Paulistinha Querida" que venceu o carnaval de 1936 e perdeu no concurso oficial para outra marcha que ninguém cantou. Além dessas dificuldades, tive de superar outras muito maiores. Sem desejar reabrir polêmicas, a questão do direito autoral continua sendo a luta mais desigual que venho sustentando em minha vida. Acusado de estar a serviço de "editores", coisa que nunca puderam provar, aqueles que ficaram sendo proprietários das sociedades arrecadadoras, antigamente modestos funcionários públicos ou compositores em formação, hoje ostentam um nível de vida altíssimo, moram bem e ficaram ricos. Eu continuo a ser o que era. Construi meu patrimônio com dinheiro ganho em fontes que facilmente se podem averiguar, e se por uma desgraça qualquer me vir na contingência de parar de trabalhar, não sei o que será de mim. Com todo imenso repertório que tenho, repertório executado diariamente no Brasil inteiro e no estrangeiro, não chego a receber quinze mil cruzeiros mensais de direitos. Contudo, vou vivendo. Na certeza de que nunca transigi com meus princípios de dignidade profissional e nunca colaborei, direta ou indiretamente, para a decadência da nossa pobre música popular. O ambiente foi invadido por autênticos aventureiros e tubarões, falsos e ridículos compositores, traficantes de melodias e o resultado ai está: decadência! decadência! decadência! Os incorrigíveis ladrões de músicas alheias chegaram a inventar uma doutrina jurídica "sui generis" segundo a qual "roubar até quatro compassos, não é roubo". Quer dizer: roubar quatro sacos de farinha, não é roubo; mais de quatro é. Vão pro diabo que os carregue!... Isto no setor de música. Se fosse recordar o que me aconteceu como locutor desportivo, então, a novela não acabaria mais. Chega. Ponto final. Que Deus salve a música popular do Brasil!.