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  De Ary | Sobre Ary

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  Ary Barroso e Pirilo
Mário Filho - 0000-00-00

Quase todo mundo esta convencido de que conhece Pirilo. "Ora, o Pirilo... quem é que não conhece o Pirilo?" O rádio, os jomais, popularizaram o nome de Pirilo como o de um sabonete. E, de quando em quando, a fotografia dele ocupa duas, três colunas dos jomais. O leitor vê a fisionomia familiar de Pirilo. Sabe-a de cor: um jogador de futebol que alcançou a fama é uma espécie de amigo comum, de um parente de todos. E o mal aí está: como se ouve falar, entra ano e sai ano, em Pirilo, aceita-se um retrato dele, não muito fiel, feito de cabeça, de acordo com as poses dele para os fotografos. Ali está Pirilo, e ninguém discute mais, nem perde tempo. A curiosidade do público satisfez-se de Pirilo. Silvio Pirilo nasceu em tal data, começou a jogar futebol com tantos anos, etc. Quem imagina que este Silvio Pirilo não é apenas um jogador de futebol, é também um ser humano, capaz de uma porção de coisas, boas e más? Se alguém imaginou um ser humano, chamado Silvio Pirilo, ficou nisso, imaginou só.

Aliás, Pirilo não fez propaganda do outro Pirilo, do bom filho que
comprou mou casa de setenta e cinco contos para a mãe, lá em Porto Alegre, Rua Visconde de Herval n. 1.049. A casa tem três quartos, duas salas, uma saleta que pode servir de quarto também, em caso de necessidade; um jardim na frente, uma horta no quintal. Pirilo comprou-a em 41, quando veio para o Flamengo. Dinheiro, dinheiro, ele só começara a ganhar um pouco antes. Em 38 Pirilo perdeu o pai. O pal dele tinha três automóveis na praça; ganhava o bastante para sustentar a família. O pai morreu. Os três automóvels, com prestações atrasadas, criaram asas. Pirilo, então, pensou na vida. Antes tudo era fácil. Ele trabalhava como mecânico na casa Ribeiro Yung, de Norberto Yung, e ganhava dezoito mil réis por dia. Os dezoito mil réis chegavam e sobravam. Sem o pai, porém, Pirilo precisava ganhar mais. E como ganhar mais? Só jogando futebol. O center-forward do Intemacional assinou um contrato.

À vista ele recebeu quatro contos; pode, então alugar uma casa e comprar uns móveis. O dinheiro ainda não chegava. A família de Silvio Pirilo era grande: Dona Fortunata, a mãe, mais oito irmãos, seis moças, dois rapazes. As moças estavam para casar. Como comprar o enxoval? Foi pensando no enxoval das irmãs que Pirilo trocou o Intemacional pelo Peñarol. O Peñarol oferecia quarenta contas de luvas. Com as luvas do Peñarol ele compraria o enxoval para a Lídia, a Sueli, a Hilda. A Lídia era mais moça do que a Sueli, mas ia se casar antes. E Silvlo Pirilo deu para ir a um "magasin" da Rua 19 de Julho, "London-Paris". Lá ele compraria as peças para o enxoval da Lídia. E as moças do balcão achavam graça naquele homem de bigode penteado para baixo, dobrando-se sobre os lábios grossos, com um nariz de boxeur, que alisava seda de peças íntimas de mulher.

Pirilo não tinha vergonha de pedir as peças íntimas. Ficava mais série do que de costume, com uma gravidade quase cômica. "E o tamanho?" - perguntava a moça do balcão. Pirilo coçava o queixo. É verdade, o tamanho. Como ele não pensara no tamanho? O tamanho - vamos ver -, o tamanho... a Sueli era como aquela vendedora ali, tinha o mesmo corpo. E Pirilo apontava para a moça do balcão que tinha o corpo da Sueli. As outras abafavam o riso. Era engraçado, realmente, ver um homem as voltas com soutien, com camisolas de dormir, rendadas, uma do dia, "E que eu vou casar a minha irmã" - Pirilo explicava, tomando-se ainda mais solene. A idéla de comprar uma casa tinha de ficar para mais tarde, depois do casamento das três: de Lídia, de Sueli, de Hilda. E as três se casaram em menos de dois anos, de meados de 39 a fins de 40. Quando o Flamengo o descobriu, Pirilo já podia pensar na casa.

O Peñarol não pediu muito pelo passe dele: vinte e cinco contos. Ary Barroso achou pouco. Um jogador que custava vinte e cinco contos podia substituir um Leônidas? Claro que não. Pirilo veio inocente, sem saber de nada: que havia um Ary Barroso; que o Flamengo queria botar Leônidas na cerca e que ele teria de lutar contra o inventor da bicicleta. Para Pirilo, Leônidas seria uma sombra. O torcedor, mentalmente, comparava-o a Leônidas. "Aquele gol Leônidas fazia". Aí começou o mal-entendido entre Pirilo e Ary Barroso, um mal-entendido que se arrasta ainda. Os unos passaram. Pirilo, às vezes, aperta a mão de Ary Barroso, mas pede licença logo, trata de ir embora. Como é que Pirilo pode esquecer o que Ary Barroso disse dele? Outro talvez esquecesse, não Pirilo.

Ary Barroso, uma vez - foi depois que o Flamengo levantou o bicampeonato - no meio de um discurso, tentou explicar o que havia entre ele e Pirilo. "Dizem - Ary Barroso sorriu superiormente, com a taça de champagne erguida, para o brinde aos campeões - que eu sou inimigo de Pirilo". Absolutamente. Ele não era inimigo de Pirilo. Quando Pirilo marcava um gol, a gaita do Ary tocava alegremente, como quando Zizinho, Perácio ou Vevé marcavam um gol. Mas Pirilo costumava chegar, perto do gol; ele, Ary, preparava-se para tocar a gaitinha, iluminava-se com a esperança de mais um número no placar, e aí Pirilo mandava a bola for a. Se fosse uma vez na vida e outra na morte, va lá, mas era uma porção de vezes. Tantas que ele, Ary, já não se iludia mais com os chutes de Pirilo. "E apesar de tudo, eu gosto de Pirilo. Poucos jogadores me merecem o respeito de um Pirilo. Não como jogador - mas como homem bom, probo, leal".

Todos se voltaram para Pirilo. Pirilo tinha bebido um pouco - estava num banquete, num banquete em honra aos campeões e ele era um campeão, suara a camisa, correra em campo, vinha suando a camisa, correndo em campo há três anos - não fazia mal beber um bocadinho mais. Antes do Ary levantar-se para o discurso, Pirilo ria, entregava-se todo à alegria da festa. "Você compreende - Pirilo conta - A gente não pode passar assim, sem mais nem menos, da alegria para a tnisteza. Por que o Ary ia falar naquilo?" Bem que Pirilo procurou ser forte, não chorar, mas acabou chorando. Nandinho e Bria se viraram para Pirilo, que estava entre os dois, e toca a consolá-lo. "Deixe disse, Pirilo, seja homem, homem não chora". Pois um homem de sentimento chorava, aí é que estava a história, e chorava muito, as lágrimas descendo umas atrás das outras, deixando um gosto de sal na boca.

Nem Bria nem Nandinho compreendiam Pirilo. Eram amigos dele, e andavam juntos com ele. O discurso de Ary Barroso fez Pirilo pensar em casa, nas vezes que Ary Barroso falara mal dele. Avalie se Dona Fortunata estivesse junto de um rádio e escutasse Ary Barroso. Pelo Hélio - o irmão mais velho - Pirilo podia fazer idéia de como ficaria Dona Fortunata, se escutasse. O Hélio ja estava avisado, não ligava para Ary Barroso. Mas, no jogo em que Pirilo não marcava um gol, ele deixava de jantar, ficava sem falar com ninguém; só melhorava quando Pirilo lhe escrevia uma carta, contando o que houvera, mandando recortes de jomais, uns com elogios, para serem mostrados a Dona Fortunata, a Sueli, a Lília, a Hilda - as irmãs casadas -, e às irmãs solteiras - Ivone, Gladys, Marlene. Aí o Hélio criava alma nova, lendo e relendo a carta. "Eu logo vi".

Ary Barroso fôra reavivar recordações amargas e acabara com a festa para Pirilo. Ary pegara-o desprevenido. Pirilo não contava com aquilo, por isso misturara o vinho branco com o vinho verde, com o champagne nacional do brinde. Não era ele só que estava mais pra lá do que pra cá. Domingos, tão quieto, tão de poucas palavras, levantava-se de dois em dois minutos e deitava oratória, exigindo que o Curvelo falasse. Apesar disso, de ver todo mundo mais ou menos como ele - alias ele não via direito, tudo se tomara confuso para ele - Pirilo abandonou o salão. Gente foi atrás dele, pensando que ele queria esperar o Ary lá fora. Não, ele não ia esperar o Ary Barroso. O caso entre ele e Ary Barroso era insolúvel. Se eles fossem brigar com palavras, o Ary ganharia longe; e de outro jeito, a soco, "eu sou muito mais forte do que ele, não pode ser".

E realmente o caso não tinha solução. Se tivesse solução já estaria resolvido, desde o Fla-Flu de 41, quando Pirilo marcou três gols e Ary Barroso esqueceu-se de que era Leônidas e virou Pirilo. O jôgo acabara. Pirilo estava no vestiário. Já tinha tirado a camisa e respirava forte, mostrando o busto nu. E Ary Barroso aparece com um monte de notas de cinco mil réis na mão, entrega o monte de notas a Pirilo. Pirilo não agradeceu. Chegando em casa contou o dinheiro: cento e quinze mil réis - vinte e três notas de cinco mil réis - e notas vehas, tão velhas que ele quase não reconheceu o Barão do Rio Branco. E ele jurou que não tocaria naquele dinheiro, o dinheiro de Ary Barroso, por nada deste mundo - nem que no fim da vida precisasse daquele dinheiro para matar a fome. Os cento e quinze mil réis forum atirados numa caixa de papelão e de lá não mais sairam.

E deixe estar que, às vezes, cento e quinze mil réis faziam falta naquela época. Biguá e Plácido - os dois moravam com Pirilo, no mesmo apartamento - aproveitavam a ocasião. Capricho bobo aquele. Cento e quinze mil réis eram cento e quinze mil réis. E depois, para que tudo aquilo? Ary Barroso nem desconfiava de nada. Biguá e Perácio apostaram que Ary Barroso estava certo de que os cento e quinze mil réis fizeram bom proveito a Pirilo. "Talvez Ary Barroso nem se lembre mais de que deu cento e quinze mil réis a Pirilo". E o dinheiro, atirado para um canto, amontoado numa caixa de sapato, metido dentro de uma comoda. Um belo dIa, quando Pirilo menos esperar, adeus cento e quinze mil réis. E Ary Barroso vai ficar contente. Para ele foi Pirilo quem gastou o dinheiro. E Pirilo não precisava olhar assim para ele, Biguá, para ele, Perácio, "Você nos conhece, Pirilo, nós somos incapazes de uma coisa dessas. Se o dinheiro desaparecer, alguém roubou, entrou no quarto, descobriu a caixa de sapatos". E se eles falavam era porque ficavam nervosos, só de penaar que havia cento e quinze mil réis sem destino, neste Rio de Janeiro.

Pirilo, aí, abriu a gaveta da comoda, contou o dinheiro. Cinco, dez, quinze, vinte, vinte e cinco, a soma vai até cento e quinze. E quando volta a guardar a caixa de sapatos, Pirilo atira-a no fundo da comoda, com desprezo, para que as cédulas se embaralhem. "Eu, você - Perácio bota a cabeça para trabathar - mandava o dinheiro para o Ary". Pirilo recusa-se. Se ele soubesse qual era o dinheiro do Ary, então, sim, há muito tempo que o dinheiro não estaria ali. "Se o Ary deu o dinheiro a você, era porque o dinheiro era dele". Nada disse. Onde o Perácio viu alguém com vinte e três notas de cinco mil réis no bolso? "O Ary fez uma coleta: cada flamengo entrou com cinco mil réis". Até nisso o Ary quisera magoá-lo, humilhá-lo. Notas assim, tão velhas, só se dava a pobre. "No tempo do Leônidas eu garanto como o Ary ia para o campo com notas de cem mangos, novinhas em folha".

A briga - se é que se pode chamar de briga - de Ary Barreso e Pirilo mostra um Pirilo que não perdoa - caprichoso, com uma memória, implacável para ofensas. "O Pirilo, quando é inimigo, é assim" - há de dizer o leitor, tirando conclusões. Pois não é assim, não senhor. Pirilo teve um inimigo em futebol: Spineli. No meio de um Fla-Flu Pirilo e Spineli saltam para cabecear uma bola. A gente ve Spineli descer, levar a mão à boca, investir, depois, para Pirilo. O soco de Spineli passou por cima da cabeça de Pirilo, que se abaixou. Juca viu, botou Spineli para fora de campo. Não adiantou Spineli chegar e mostrar a Juca a boca sangrando, quatro dentes da frente amolecidos. Spineli saiu de campo, provou ao Fluminense, par a mais b, que tinha apanhado. Todo monda acreditou. De um momento para outro Pirilo ganhou fama de boxeur. Bastava que ele entrasse numa área para a gente ficar esperando um knock-out.

E Pirilo tinha o nariz de pugilista. Quem sabe se ele não jogara box em "ring" de verdade? Se não jogara, pior, ou por outra, melhor ainda: ele era um boxeur nato, uma dessas vocações irresistíveis. Apareceu um empresário com grandes planos a respeito de Pirilo. O que faltava ao pugilismo brasileiro era um Pirilo. Quem deixaria de comprar um ingresso para ver Pirilo de luvas contra um Rubem Soares? Pirilo não quis, achou que não dava para a história. Brigar com Spineli era uma coisa, brigar com Rubens Soares outra, completamente direrente. Quando ele via Spineli, fechava logo a mão, preparando um soco. Em Pacaembu, Pirilo deu outro murro em Spineli. Spineli reagiu, o juiz não converisou: fora. Pirilo saiu pelo corroder do Fluminense. Ouviu passos atrás: era Spineli. Spineli porém, descobrindo que aquele era o corredor do vestiárlo do Flamengo, virou as costas, saiu à procura de outro corredor.

Um dia Pedro Amorim perguntou a Pirilo por que ele não fazia as pazes com Spineli. Pirilo respondeu que não ia com a cara de Spineli, achava Spineli antipático e na simpatia da gente ninguém manda. Pedro Amorim disse que Pirilo estava enganado. O Spineli era um bom rapaz, religioso até, não passava domingo que ele deixasse de ouvir missa na Matriz da Glória. Pirilo ficou desconfiado de que Spineli era mesmo um bom rapaz. Parecia de propósito. Daí a pouco apareceu Spineli. Pedro Amorim chamou-o, apresentou-o a Pirilo. "Silvio Pirilo, Américo Spineli", um aperto de mão mole, de dedos fugidios, e depois "eu preciso me encontrar com um amigo", "eu também tenho um encontro". Passam-se os dias e Américo Spineli dá de cara com Silvio Pirilo. "Boa-tarde, boa-tarde, vamos tomar um café? Vamos". Conversa puxa conversa, não demorou, muito os dois entraram em confidências, como velhos amigos.

Tanto que, quando Nandinho, Vevé e Pedro Amorim resolveram veranear em Paquetá, chamaram Pirilo e Spineli. Pirilo e Spineli se juntaram feito unha e came, para onde ia um, ia o outro. Nandinho, Vevé e Pedro Amorim enjoaram de Paquetá. Pirilo e Spineli, não. Agora, sem os outros os dois podiam conversar à vontade. E o Flamengo teve que chamar Pirilo, estranhar aquela demora toda; o Flunsinense chegou a pensar que Spineli tinha ido para Buenos Aires. Os dois vieram na mesma barca, tomaram o mesmo taxi na Praça Quinze. E, todas as vezes que se lembravam dos socos que tinham trocado, era para rir. "O Juta não viu nada, Spineli, eu com cara de inocente". "Você não sabe o ódio que eu senti, Pirilo". "Quem diria que iriamos ficar amigos, hem?". "Foi melhor assim. Assim a gente se conheceu melhor".

Da briga dos dois todo mundo falou, mas pouca gente sabe que eles fizeram as pazes.

(Capítulo "Pirilo, o Desconhecido", págs. 295 a 302 do livro Histórias do Flamengo)